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27 de fevereiro de 2020

a cigana # 7

Senti-me confusa. Não me apercebi imediatamente da versão que o meu noivo lhes tinha contado, dado que não era a mim que me atingiam, mas sim a ele! Só mais tarde pude perceber que mentira! Mentira ao meu povo e ao seu e ao nosso, para que a minha reputação ficasse intacta, resguardada; para que pudesse continuar a ser uma mulher de respeito e condição. Mentira: não tinha sido eu a fugir para a cidade de cimento, não tinha sido desrespeitada por um branco que me violou e me largou pela encosta abaixo, junto ao rio; tinha sido ele próprio a rasgar-me e a abusar da situação, que se não tinha contido um dia antes do casamento e me apanhou e me violentou e me bateu, porquanto já tinha bebido além da conta e não sabia explicar mais.

Agora eu já era mulher.

O casamento fora adiado; ou mesmo cancelado. Não se falava mais no assunto. Por unanimidade, estabeleceu-se que o cigano tinha de partir, pois não era seguro, nem de confiança. O meu pai chegou, porventura, a ter intenções de lhe aplicar uma sentença mais mordaz, a de acabar com a sua vida logo ali, que não era vida para quem viola uma mulher e sai impune.
O cigano mantinha-se calado. 

Antes de prosseguir, peço as minhas mais sinceras desculpas, pois esqueci-me de o apresentar devidamente. A ele, ao meu prometido, ao homem desapaixonado e alheio que eu tanto repugnava, mas que agora me protegia com o próprio corpo a servir de  escudo; com a sua vida. Manuel era o seu nome. Mas não falemos de nomes. Um nome todos possuímos e não é, de modo algum, motivo de distinção ou de honradez. Posso dizer que se tratava de um homem calado, um homem de preto, de camisa aberta num decote despido. Um homem que trazia ao peito o amuleto que nos uniria para sempre; uma medalha incerta no balançar de um cordão. Um homem de barba negra e robusta; negra. Um homem bom.

Nesse instante, dei conta de que a vida real anda, impreterivelmente, de mãos dadas com os contos dos livros mágicos, que a minha história possui a mesma emoção e brilho que acompanha as princesas em apuros; um príncipe encantado que as salva de um dragão feroz, guardião da torre mais alta de um palácio do reino mais longínquo. Não um príncipe estereotipado, alto e forte e bonito e sedutor, de magnífica espada reluzente e um ágil cavalo alado, branco, com asas; mas um homem comum, respeitador, consciente, de bom coração; uma outra faceta, não encantada, mas encantadora, de um príncipe encantado; o meu.

20 de fevereiro de 2020

a cigana # 6

Estava escuro quando senti a presença de alguém a aproximar-se. Consegui sentar-me, a custo, na relva húmida da noite. Tremia. As minhas mãos tentavam arrepanhar os farrapos que restavam para me cobrir. E vi-o! A ele, à única pessoa a quem não me podia queixar, à única pessoa que não podia saber que virgem já não ia para a sua cama; que tinha renegado o meu mundo e os limites do meu sítio; que tinha recorrido à cidade de cimento... O meu prometido!

Fazia frio e vento, e um implacável silêncio cobria-nos com um manto espesso de alcatrão. Não conseguia respirar nem sentir o corpo. A cabeça estava zonza e um fio de sangue quente corria-me por entre as trémulas pernas. Tentei tapar, em vão, a minha nudez. O cigano caminhava, decidido, na minha direcção; as botas pesadas marcavam o território com irascibilidade. Não se mostrou hesitante em momento algum; permaneceu impassível. Pegou-me ao colo como se fosse sua e não tivesse sequer vontade própria, e levou-me para a sua barraca. O burrico e os cavalos estavam irrequietos; o resto do acampamento dormia sossegado.

Deitou-me em cima do colchão que iria ser nosso; o nosso leito de núpcias e para toda a vida em comum. De seguida, arrancou-me avidamente o que restava das roupas rasgadas e despiu a sua camisola com a secura com que me trouxera até ali. Deixei-me ficar imóvel, permitindo ao coração que me mutilasse mais agilmente que o medo. Tremi e chorei. Mergulhou, então, a camisola num balde com água e começou a limpar-me o corpo da terra e relva e pedras, as feridas, o sangue que lentamente me aquecia. E ficou ajoelhado perante o meu ser por um momento; alheio aos meus pensamentos; vertido nele próprio. Depois disso, saiu da tenda e regressou com uma roupa de mulher casada, escura e larga, com o decote bem rente ao pescoço. Vestiu-me e saiu para não mais voltar naquela noite.

A luz do sol era de oiro naquela manhã, semelhante a um clarão de fogo que me cegava a vista. Sentia dores agonizantes no rosto, nas costas, nos seios, entre as pernas; um ardor que me deixava curvada. Levantei-me com dificuldade. Observei o espaço em meu redor, a barraca do meu prometido. No chão de lona, alongava-se um amplo colchão com almofadas de riscas quentes a cobiçar o fronteiro baú dourado. A um canto, erguia-se um espelho desprovido de moldura e uma bacia com motivos florais, um cabide de madeira e muitas salvas de prata que alumiavam o breu com os seus misteriosos raios ardentes.

Quando saí para o exterior, já todos estavam reunidos em redor da fogueira apagada, vigiada pelas cinzas pretas na relva acamada. Calaram-se quando me avistaram. Apenas a minha mãe se esticou e gritou e me apertou, parecendo que lhe faltava a vida.

- Ai! Seu demónio! Ai! Seu animal! – chorou, caindo a meus pés. – A minha menina!

   O resto do mulherio, uma ondulante nuvem negra, murmurava um queixume em coro; uma reza chorada, intervalada com gritos desmedidos, palavrões atirados em flecha. Uniam as mãos a Deus e amarfanhavam o rosto ao vento. Pediam por mim.

13 de fevereiro de 2020

a cigana # 5

Vi homens e mulheres bonitos como nunca pude imaginar! Arranjados, perfumados, de olhos e cabelos claros! Elas, com saltos altos e reluzentes, e saias curtas; eles, de barba feita, alguns de gravata. Caminhei muito tempo à deriva, sem saber o que fazer, a quem me dirigir, o que pedir, o que dizer. Sentia fome. Calculei que já passasse do meio-dia, dado que o sol se precipitava do pico do céu e as lojas começavam a fechar. Foi mais tarde que arranjei coragem e entrei numa loja de calçado. Tomei fôlego, descaí a cabeça, em sinal de humildade e respeito, e ultrapassei o limiar da porta.

– Boa tarde...- percorri o chão macio e suave e cheiroso até à senhora loira e lindíssima que me olhava por trás do balcão.

Mas, mal abri a boca já ela, afogueada, me açoitava porta fora. Atirou-me os olhos redondos e autoritários, a voz esganiçada – Vá-se embora! Não damos esmolas! – arrastou-me, furiosa, como se o mal fosse agredi-la com a minha presença.

Entrei em mais de uma dúzia de lojas e tive, em todas, reacção idêntica. Não me deram a oportunidade sequer de pedir desculpas pelo mal causado. Nada. Unicamente os cães rafeiros e abandonados me circundavam e me compreendiam a rejeição.

O dia escureceu não tardou muito. Reparei que me tinha afastado consideravelmente e que estava perdida, sem destino, sem saber como ou se queria regressar ao sítio. Perdida!

A noite caía limpa e densa de contas brilhantes. Já era tarde quando avistei um polícia e me dirigi a ele. Sabia que não tínhamos leis comuns, mas era a minha única esperança.

- Olá... – cumprimentei, receosa.

- Olá, pequena! – saudou-me sem discriminação; quase como se eu fosse um deles, da cidade de cimento e tijolo, da mesma carne e do mesmo sangue. Igual.

            Tive um pouco de dificuldade em percebê-lo, que se a língua que falávamos era a mesma, a mim me parecia outra bem mais embrulhada e difícil de decifrar. Lembrei-me da minha amiga da escola, loira e esguia de tranças, e apercebi-me de que não só a fala era parecida, como também a entoação e a simpatia na doçura das palavras.

            - Fugi de casa... querem-me obrigar a casar e... – as lágrimas e os soluços acudiam-me e atropelavam-me os pensamentos. – Eu só queria um emprego...

            E o senhor simpático e bondoso afagou-me com cuidados. – Com que então, queres um emprego? Isso cá se arranja! Precisas é de te alimentar, de vestir um agasalho, que está a fazer frio e esses ombros à mostra... – e levou-me com ele no carro novo de luzes grandes a piscar.

O automóvel parou um bom bocado mais à frente, no resguardo da berma da estrada, junto ao rio que banhava o meu “sítio” com a certeza da sua serenidade. E o senhor olhou-me e eu não percebi. Não percebi que a crueldade não existe só no meu povo, mas em todo o lado. Subitamente, e com todo o prazer que uma gargalhada sonora pode conter, atingiu-me com um tremendo soco, que me lançou de encontro ao vidro. Excitado, arrancou-me a roupa num só puxão e, com as mãos nas goelas, fez-me calar! As forças? Perdi-as a tentar soltar-me... enquanto a cabeça, em fisgadas, girava numa agonia veloz. De seguida, senti as cuecas a rasgarem-se impiedosamente nas suas mãos firmes e decididas, e uma dor imensa fez-me sangrar! Segurando-me os seios e gemendo, deixou-se estar, sôfrego, violento, afogueado, em cima de mim e, depois de saciado, abriu a porta e atirou-me num pontapé pela ribanceira abaixo. O corpo aos encontrões na pancada das pedras! Perdi a visão; os sentidos também.

6 de fevereiro de 2020

a cigana # 4

Eu e a minha família nunca estamos muito tempo no mesmo sítio. Refiro-me a “sítio” como à minha casa, ou ao meu lar; simplesmente não me é permitido dizer casa, pois não tenho cortinas, muito menos paredes! Como estava a dizer, nunca ficamos muito tempo em cada sítio. Às vezes, dado que o frio se torna demasiado ou a chuva abundante; outras, porquanto o negócio vai mal e seguimos para terras de feiras maiores, onde os compradores abundam e o dinheiro vem melhor ao fim do mês. Outras vezes ainda, porque, de quando em quando, estalam grandes discussões entre nós, que terminam em tiroteios e até em mortes! Alguém que matou o cunhado com três tiros de caçadeira quando o apanhou na cama com a mulher, ou porque lhe abusou da filha mais nova. É complicado viver assim... É certo que não temos regras, nem leis conforme vocês e, no entanto, as vossas leis invadem-nos e tomam elas conta de nós! Não é justo, pois o povo cigano é a própria erva que se molda ao vento e ondula com ele. Nós não temos forma nem pertencemos a lado algum, apenas agimos com e para a Natureza...

Tinha quinze anos quando me obrigaram a casar. Quis fugir e ser como tu, livre e ágil como um pássaro, não como a relva que já tem um destino previamente traçado! Chorei dias e dias seguidos. Sempre tinha imaginado que a vida era um sonho e nada o podia quebrar! Acho que estava enganada... Desejava com todo o ardor sair daquele mundo, romper a teia que me acorrentava com malícia e seguir o rumo da minha alma. Estava confusa e perdida, mas tinha plena consciência que, se transpusesse a fronteira que nos separava, também tu não me aceitarias!

Conheci justamente nessa límpida noite de lua cheia aquele que viria a ser inevitavelmente o meu futuro marido. Era um homem bem mais velho do que eu, alto, seco, quase franzino, de negra barba e olhar indiferente. Exibia um largo anel no dedo indicador e um dente reluzente; ambos de oiro.

À hora do jantar, os homens e as mulheres partilharam excepcionalmente uma só mesa, em sinal de comemoração. Fizeram uma festa de cor, danças e cantares da minha longa tristeza. Quanto ao meu noivo, não me dedicou o olhar uma única vez durante longas horas. Brindava-me, sim, com a sua indiferença, cedendo cobardemente a um compromisso traçado pelo destino antes de os nossos corpos se terem definido, antes ainda de o nosso coração chegar a bater! A cerimónia ficou marcada para dali a um mês, data em que abandonaria o meu povo e seguiria com o dele. Um mês!

Incrédula, precipitei o olhar espelhado no aglomerado de prédios despidos, na tentativa vã de arranjar coragem para procurá-los e desistir de tudo. Passaram-se dias, semanas, um mês... Todas as manhãs, todas as tardes, todas as noites, tinha a irrevogável obrigação de atendê-lo tal qual uma súbdita, uma escrava, um objecto contemplativo. Cozinhava para si, lavava-lhe as roupas, cosia-as e remendava-as paciente e submissamente, acendia a fogueira e dançava para seu contentamento. Mostrava-lhe, evidentemente, os meus dotes, que era prendada, que iria dar uma boa mulher e uma boa parideira.

Faltava um dia para o casamento. Somente um dia! E foi então que o desespero me precipitou para o mundo de cimento; o mundo que sempre me desprezou e que agora o procurava e via nele a solução única para os meus males. Resoluta, acordei cedo e desapareci sem dar satisfação a ninguém. Fui como pude; descalça, de farrapos velhos e sujos numa saia comprida e rodada; uma trança negra quase até à cintura; umas argolas de oiro torcido. Aventurei-me.

30 de janeiro de 2020

a cigana # 3

Logo à nascença, fui comprometida com um rapaz da mesma etnia. Não o conheci desde sempre. Apenas viria a conhecê-lo muitas Primaveras depois.

Devo admitir que é revoltante estar noiva por imposição, não por prazer. Antes, um casamento firmemente vigiado pela tradição, em que o amor surge com os anos, provavelmente com a acomodação do casal e a resignação de ambos. Tinha, forçosamente, de obedecer a leis impostas; leis com o intuito de não serem jamais quebradas; daí a designação de “leis”.

Chamo-me Odete Oliveira. Odete, nome da minha mãe, nome igualmente da minha avó, a pessoa mais rica e profunda e encantadora que algum dia viria a conhecer. Cresci em barracas de chita, casas andantes que lembram as que os vagarosos caracóis carregam às costas a todo o custo e levam para onde quer que vão. Nunca tive uma terra; apenas poisos sem significado. Amigos, tão pouco! Brinquei e falei por momentos com algumas crianças, mas logo as mães apareciam afogueadas de susto e as tiravam de mim, pelo pecado único de poucas palavras. Aprendi, então, que falar devia de ser pecado, que o teu Deus castigava e nos tirava as crianças amigas. Deixei de falar. Anos assim! Nenhuma palavra proferida, mas, inexplicavelmente, acontecia tudo de novo: uma outra mãe afogueada que me tirava um amigo sem qualquer explicação. Cresci sem ninguém e sem compreender o mundo que me circundava. Não sabia por que o meu quarto era de pano e o teu de tijolos e cimento e tinta da cor das nuvens. Julgo que me isolava, pois tinha medo de possuir algo e que me fosse retirado de seguida; mais um castigo a juntar-se aos outros!

Mas esse não era o único medo que tinha. Havia muitos mais... o medo de andar sozinha nas ruas; medo que me gozassem e me desprezassem e me apedrejassem, como já tinha acontecido lá na escola. Medo de uma realidade cingida de mesquinhez e espelhos que reflectiam apenas o que se queria ver. Deixavam-se de lado as semelhanças que nos uniam, embora se tratasse apenas de contornar e adiar um problema, não de resolvê-lo; virar-lhe as costas e deixá-lo desenvolver-se em barracas, em bairros de lata invisíveis de dor e sofrimento! Já reparaste que, por vezes, torna-se muito mais simples não ver? Já reparaste?!

Tive, contudo, uma única amiga a quem me afeiçoei de verdade. Falava comigo abertamente, sem rodeios, e dava-me atenção. Acho que nos entendíamos bem. Confiávamos segredos. Riamo-nos. Uma vez, confessei-lhe que era pobre. Ela afagou-me com carinho e disse: “Eu também”. Senti-me, então, verdadeiramente unida a si, duas almas numa só, por termos algo em comum.

Porém, um dia, quando brincávamos no recreio, esquecidas da hora e da responsabilidade de regressar à sala de aula, fez-me chorar.

           - Ela é rica. – apontei para uma casa que espreitava a escola com impetuosidade - Tu não és, pois não?

Mas não me respondeu; os seus olhos buscando os meus.

- Ela é rica. – insisti – Tem cortinas! – fiz uma pausa e voltei-me para ela com o receio de que me desiludisse – Tu tens cortinas?

- Sim, tenho cortinas – respondeu-me, surpresa.

- Então, não és pobre! Mentiste-me!- e lembro-me que corri para longe, para que as lágrimas me caíssem com facilidade e a dor pudesse percorrer-me sem mentiras ao redor. Contudo, ainda hoje, guardo a sua serena presença no meu coração, tendo a consciência de que aquela sorridente menina loira de tranças e sardas e saia rodada foi e será sempre a melhor amiga que algum dia terei.

Nunca me importei de não pertencer a um lugar, ou a uma aldeia, ou a uma vila, ou a uma cidade, como tu certamente pertences. Escolhi, então, por minha própria iniciativa, uma terra e dei-ma; por ser bonita, por ter presenciado nela o pôr-do-sol mais limpo que algum dia pude imaginar, por nela te ter conhecido. Baptizei-me em Aveiro, sozinha, há muitos anos atrás, quando ainda os prédios grandes não existiam, somente os outros mais rasteiros, onde, todos os dias, uma menina me avistava da varanda, de vago sorriso nos lábios distantes. Sou, deste modo, aveirense. E, quando, a partir daí, me perguntaram na escola de onde vinha, já pude responder, e ninguém mais se riu de mim.

23 de janeiro de 2020

a cigana # 2


Quando era pequena, costumava sentar-me na varanda da sala a comer a sopa; ali, porque sabia que o encontraria àquelas horas, o burrico dos ciganos, cinzento e ossudo e de olhar cansado. Pedia, então, à minha doce e terna avó que desfiasse magníficas e surpreendentes histórias de ciganos, de um povo tão rico e único e incrivelmente fascinante que, naquelas divagações, também eu era um deles; eternamente cigana. 

E talvez chegasse verdadeiramente a sê-lo e não o queira confessar, para que não fujais de mim como de quem tem lepra; para que não tenhais motivos para me odiares e me discriminares, pelas macabras patranhas que em criança vos confiaram.

Li, certo dia, uma curiosa crónica num jornal ou, mais precisamente, numa revista de fim-de-semana, volumosa e de colorida capa, cómoda de folhear. Tratava-se de um artigo escrito por um indonésio; um desabafo sentido de um ser singular que chorava por uma condição que lhe impuseram e da qual não conseguia recuar. Absorvi-a avidamente e fui o mesmo indonésio que descrevia as suas emoções e frustrações para um público que o tão rapidamente leria e esqueceria como se esquece que, um dia, era naquela varanda que gostava de observar o burrico; a minha eterna fome de conhecer os ciganos, de os dissecar de branda forma e interiorizar os seus costumes e valores singulares.

Ainda no artigo em questão, algumas linhas mais adiante, comentava que tinha vergonha de ser indonésio, que o maltratavam e o agrediam e o criticavam e o não aceitavam e o rotulavam pela nação que vestia; que não compreendia por que motivo os seus amigos, os familiares com quem costumava conversar ou tomar a bica no café se haviam tornado assassinos, monstros cruéis que tinham como punhal a morte e a vingança para traçar um destino; o seu por acréscimo.

Porventura, talvez ele seja igualmente um pouco cigano; cigano de nome e de diferença e de opressão e de discriminação.

Nasci num mundo rígido que, desde muito cedo, me cortou terminantemente as asas e a esperança; um mundo bastardo, em que me debatia para mostrar aos outros que existia por mim e não unicamente por aquilo que envergava: o meu povo, a identidade cigana. Provavelmente por esse motivo, consumia os dias à volta de contos fantásticos de sereias, em que o seu sonho era sair do mar, desafiar um pseudo-mundo e conquistar tão somente um coração que lhe estava destinado pelos céus e pelas estrelas. Teria então pernas, a única arma que igual aos outros me tornaria, pois sentia que o não era. Todavia, os anos e a vida ensinaram-me que a realidade não é um conto...

22 de janeiro de 2020

a cigana # 1

Temos mais uma rubrica.

Chama-se "A cigana" e trata-se da divulgação semanal de um conto da minha autoria dividido em 6 partes.

Foi escrito há muitos anos e ganhou uma mensão honrosa no Concurso Jovem Criador numa data já recuada.

Não é propriamente um relato de vida, mas reúne pequenas estóricas verídicas com um pano de fundo fictício de quem apenas escutou os outros e lhes deu voz. 

Sai às quintas-feiras.

Para ler.