Estava escuro quando senti a presença de alguém a
aproximar-se. Consegui sentar-me, a custo, na relva húmida da noite. Tremia. As
minhas mãos tentavam arrepanhar os farrapos que restavam para me cobrir. E vi-o!
A ele, à única pessoa a quem não me podia queixar, à única pessoa que não podia
saber que virgem já não ia para a sua cama; que tinha renegado o meu mundo e os
limites do meu sítio; que tinha recorrido à cidade de cimento... O meu
prometido!
Fazia frio e vento, e um
implacável silêncio cobria-nos com um manto espesso de alcatrão. Não conseguia
respirar nem sentir o corpo. A cabeça estava zonza e um fio de sangue quente
corria-me por entre as trémulas pernas. Tentei tapar, em vão, a minha nudez. O
cigano caminhava, decidido, na minha direcção; as botas pesadas marcavam o
território com irascibilidade. Não se mostrou hesitante em momento algum;
permaneceu impassível. Pegou-me ao colo como se fosse sua e não tivesse sequer
vontade própria, e levou-me para a sua barraca. O burrico e os cavalos estavam
irrequietos; o resto do acampamento dormia sossegado.
Deitou-me em cima do colchão que iria ser nosso; o
nosso leito de núpcias e para toda a vida em comum. De seguida, arrancou-me
avidamente o que restava das roupas rasgadas e despiu a sua camisola com a
secura com que me trouxera até ali. Deixei-me ficar imóvel, permitindo ao
coração que me mutilasse mais agilmente que o medo. Tremi e chorei. Mergulhou,
então, a camisola num balde com água e começou a limpar-me o corpo da terra e
relva e pedras, as feridas, o sangue que lentamente me aquecia. E ficou
ajoelhado perante o meu ser por um momento; alheio aos meus pensamentos;
vertido nele próprio. Depois disso, saiu da tenda e regressou com uma roupa de
mulher casada, escura e larga, com o decote bem rente ao pescoço. Vestiu-me e
saiu para não mais voltar naquela noite.
A luz do sol era de oiro naquela manhã, semelhante
a um clarão de fogo que me cegava a vista. Sentia dores agonizantes no rosto,
nas costas, nos seios, entre as pernas; um ardor que me deixava curvada.
Levantei-me com dificuldade. Observei o espaço em meu redor, a barraca do meu
prometido. No chão de lona, alongava-se um amplo colchão com almofadas de
riscas quentes a cobiçar o fronteiro baú dourado. A um canto, erguia-se um
espelho desprovido de moldura e uma bacia com motivos florais, um cabide de
madeira e muitas salvas de prata que alumiavam o breu com os seus misteriosos
raios ardentes.
Quando saí para o exterior, já todos estavam reunidos
em redor da fogueira apagada, vigiada pelas cinzas pretas na relva acamada.
Calaram-se quando me avistaram. Apenas a minha mãe se esticou e gritou e me
apertou, parecendo que lhe faltava a vida.
- Ai! Seu demónio! Ai! Seu animal! – chorou,
caindo a meus pés. – A minha menina!
O resto do mulherio, uma
ondulante nuvem negra, murmurava um queixume em coro; uma reza chorada,
intervalada com gritos desmedidos, palavrões atirados em flecha. Uniam as mãos
a Deus e amarfanhavam o rosto ao vento. Pediam por mim.
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