20 de fevereiro de 2020

a cigana # 6

Estava escuro quando senti a presença de alguém a aproximar-se. Consegui sentar-me, a custo, na relva húmida da noite. Tremia. As minhas mãos tentavam arrepanhar os farrapos que restavam para me cobrir. E vi-o! A ele, à única pessoa a quem não me podia queixar, à única pessoa que não podia saber que virgem já não ia para a sua cama; que tinha renegado o meu mundo e os limites do meu sítio; que tinha recorrido à cidade de cimento... O meu prometido!

Fazia frio e vento, e um implacável silêncio cobria-nos com um manto espesso de alcatrão. Não conseguia respirar nem sentir o corpo. A cabeça estava zonza e um fio de sangue quente corria-me por entre as trémulas pernas. Tentei tapar, em vão, a minha nudez. O cigano caminhava, decidido, na minha direcção; as botas pesadas marcavam o território com irascibilidade. Não se mostrou hesitante em momento algum; permaneceu impassível. Pegou-me ao colo como se fosse sua e não tivesse sequer vontade própria, e levou-me para a sua barraca. O burrico e os cavalos estavam irrequietos; o resto do acampamento dormia sossegado.

Deitou-me em cima do colchão que iria ser nosso; o nosso leito de núpcias e para toda a vida em comum. De seguida, arrancou-me avidamente o que restava das roupas rasgadas e despiu a sua camisola com a secura com que me trouxera até ali. Deixei-me ficar imóvel, permitindo ao coração que me mutilasse mais agilmente que o medo. Tremi e chorei. Mergulhou, então, a camisola num balde com água e começou a limpar-me o corpo da terra e relva e pedras, as feridas, o sangue que lentamente me aquecia. E ficou ajoelhado perante o meu ser por um momento; alheio aos meus pensamentos; vertido nele próprio. Depois disso, saiu da tenda e regressou com uma roupa de mulher casada, escura e larga, com o decote bem rente ao pescoço. Vestiu-me e saiu para não mais voltar naquela noite.

A luz do sol era de oiro naquela manhã, semelhante a um clarão de fogo que me cegava a vista. Sentia dores agonizantes no rosto, nas costas, nos seios, entre as pernas; um ardor que me deixava curvada. Levantei-me com dificuldade. Observei o espaço em meu redor, a barraca do meu prometido. No chão de lona, alongava-se um amplo colchão com almofadas de riscas quentes a cobiçar o fronteiro baú dourado. A um canto, erguia-se um espelho desprovido de moldura e uma bacia com motivos florais, um cabide de madeira e muitas salvas de prata que alumiavam o breu com os seus misteriosos raios ardentes.

Quando saí para o exterior, já todos estavam reunidos em redor da fogueira apagada, vigiada pelas cinzas pretas na relva acamada. Calaram-se quando me avistaram. Apenas a minha mãe se esticou e gritou e me apertou, parecendo que lhe faltava a vida.

- Ai! Seu demónio! Ai! Seu animal! – chorou, caindo a meus pés. – A minha menina!

   O resto do mulherio, uma ondulante nuvem negra, murmurava um queixume em coro; uma reza chorada, intervalada com gritos desmedidos, palavrões atirados em flecha. Uniam as mãos a Deus e amarfanhavam o rosto ao vento. Pediam por mim.

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