13 de fevereiro de 2020

a cigana # 5

Vi homens e mulheres bonitos como nunca pude imaginar! Arranjados, perfumados, de olhos e cabelos claros! Elas, com saltos altos e reluzentes, e saias curtas; eles, de barba feita, alguns de gravata. Caminhei muito tempo à deriva, sem saber o que fazer, a quem me dirigir, o que pedir, o que dizer. Sentia fome. Calculei que já passasse do meio-dia, dado que o sol se precipitava do pico do céu e as lojas começavam a fechar. Foi mais tarde que arranjei coragem e entrei numa loja de calçado. Tomei fôlego, descaí a cabeça, em sinal de humildade e respeito, e ultrapassei o limiar da porta.

– Boa tarde...- percorri o chão macio e suave e cheiroso até à senhora loira e lindíssima que me olhava por trás do balcão.

Mas, mal abri a boca já ela, afogueada, me açoitava porta fora. Atirou-me os olhos redondos e autoritários, a voz esganiçada – Vá-se embora! Não damos esmolas! – arrastou-me, furiosa, como se o mal fosse agredi-la com a minha presença.

Entrei em mais de uma dúzia de lojas e tive, em todas, reacção idêntica. Não me deram a oportunidade sequer de pedir desculpas pelo mal causado. Nada. Unicamente os cães rafeiros e abandonados me circundavam e me compreendiam a rejeição.

O dia escureceu não tardou muito. Reparei que me tinha afastado consideravelmente e que estava perdida, sem destino, sem saber como ou se queria regressar ao sítio. Perdida!

A noite caía limpa e densa de contas brilhantes. Já era tarde quando avistei um polícia e me dirigi a ele. Sabia que não tínhamos leis comuns, mas era a minha única esperança.

- Olá... – cumprimentei, receosa.

- Olá, pequena! – saudou-me sem discriminação; quase como se eu fosse um deles, da cidade de cimento e tijolo, da mesma carne e do mesmo sangue. Igual.

            Tive um pouco de dificuldade em percebê-lo, que se a língua que falávamos era a mesma, a mim me parecia outra bem mais embrulhada e difícil de decifrar. Lembrei-me da minha amiga da escola, loira e esguia de tranças, e apercebi-me de que não só a fala era parecida, como também a entoação e a simpatia na doçura das palavras.

            - Fugi de casa... querem-me obrigar a casar e... – as lágrimas e os soluços acudiam-me e atropelavam-me os pensamentos. – Eu só queria um emprego...

            E o senhor simpático e bondoso afagou-me com cuidados. – Com que então, queres um emprego? Isso cá se arranja! Precisas é de te alimentar, de vestir um agasalho, que está a fazer frio e esses ombros à mostra... – e levou-me com ele no carro novo de luzes grandes a piscar.

O automóvel parou um bom bocado mais à frente, no resguardo da berma da estrada, junto ao rio que banhava o meu “sítio” com a certeza da sua serenidade. E o senhor olhou-me e eu não percebi. Não percebi que a crueldade não existe só no meu povo, mas em todo o lado. Subitamente, e com todo o prazer que uma gargalhada sonora pode conter, atingiu-me com um tremendo soco, que me lançou de encontro ao vidro. Excitado, arrancou-me a roupa num só puxão e, com as mãos nas goelas, fez-me calar! As forças? Perdi-as a tentar soltar-me... enquanto a cabeça, em fisgadas, girava numa agonia veloz. De seguida, senti as cuecas a rasgarem-se impiedosamente nas suas mãos firmes e decididas, e uma dor imensa fez-me sangrar! Segurando-me os seios e gemendo, deixou-se estar, sôfrego, violento, afogueado, em cima de mim e, depois de saciado, abriu a porta e atirou-me num pontapé pela ribanceira abaixo. O corpo aos encontrões na pancada das pedras! Perdi a visão; os sentidos também.

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