Senti-me confusa. Não me apercebi imediatamente da
versão que o meu noivo lhes tinha contado, dado que não era a mim que me
atingiam, mas sim a ele! Só mais tarde pude perceber que mentira! Mentira ao
meu povo e ao seu e ao nosso, para que a minha reputação ficasse intacta,
resguardada; para que pudesse continuar a ser uma mulher de respeito e
condição. Mentira: não tinha sido eu a fugir para a cidade de cimento, não
tinha sido desrespeitada por um branco que me violou e me largou pela encosta
abaixo, junto ao rio; tinha sido ele próprio a rasgar-me e a abusar da
situação, que se não tinha contido um dia antes do casamento e me apanhou e me
violentou e me bateu, porquanto já tinha bebido além da conta e não sabia
explicar mais.
Agora eu já era mulher.
O casamento fora adiado; ou mesmo cancelado. Não
se falava mais no assunto. Por unanimidade, estabeleceu-se que o cigano tinha
de partir, pois não era seguro, nem de confiança. O meu pai chegou, porventura,
a ter intenções de lhe aplicar uma sentença mais mordaz, a de acabar com a sua
vida logo ali, que não era vida para quem viola uma mulher e sai impune.
O cigano mantinha-se calado.
Antes de prosseguir, peço as minhas mais sinceras
desculpas, pois esqueci-me de o apresentar devidamente. A ele, ao meu
prometido, ao homem desapaixonado e alheio que eu tanto repugnava, mas que
agora me protegia com o próprio corpo a servir de escudo; com a sua vida. Manuel era o seu
nome. Mas não falemos de nomes. Um nome todos possuímos e não é, de modo algum,
motivo de distinção ou de honradez. Posso dizer que se tratava de um homem
calado, um homem de preto, de camisa aberta num decote despido. Um homem que
trazia ao peito o amuleto que nos uniria para sempre; uma medalha incerta no
balançar de um cordão. Um homem de barba negra e robusta; negra. Um homem bom.
Nesse instante, dei conta de que a vida real anda,
impreterivelmente, de mãos dadas com os contos dos livros mágicos, que a minha
história possui a mesma emoção e brilho que acompanha as princesas em apuros;
um príncipe encantado que as salva de um dragão feroz, guardião da torre mais
alta de um palácio do reino mais longínquo. Não um príncipe estereotipado, alto
e forte e bonito e sedutor, de magnífica espada reluzente e um ágil cavalo
alado, branco, com asas; mas um homem comum, respeitador, consciente, de bom
coração; uma outra faceta, não encantada, mas encantadora, de um príncipe
encantado; o meu.
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