Eu e a minha família nunca estamos muito tempo no
mesmo sítio. Refiro-me a “sítio” como à minha casa, ou ao meu lar; simplesmente
não me é permitido dizer casa, pois não tenho cortinas, muito menos paredes!
Como estava a dizer, nunca ficamos muito tempo em cada sítio. Às vezes, dado
que o frio se torna demasiado ou a chuva abundante; outras, porquanto o negócio
vai mal e seguimos para terras de feiras maiores, onde os compradores abundam e
o dinheiro vem melhor ao fim do mês. Outras vezes ainda, porque, de quando em
quando, estalam grandes discussões entre nós, que terminam em tiroteios e até
em mortes! Alguém que matou o cunhado com três tiros de caçadeira quando o
apanhou na cama com a mulher, ou porque lhe abusou da filha mais nova. É
complicado viver assim... É certo que não temos regras, nem leis conforme vocês
e, no entanto, as vossas leis invadem-nos e tomam elas conta de nós! Não é
justo, pois o povo cigano é a própria erva que se molda ao vento e ondula com
ele. Nós não temos forma nem pertencemos a lado algum, apenas agimos com e para
a Natureza...
Tinha quinze anos quando me obrigaram a casar.
Quis fugir e ser como tu, livre e ágil como um pássaro, não como a relva que já
tem um destino previamente traçado! Chorei dias e dias seguidos. Sempre tinha imaginado
que a vida era um sonho e nada o podia quebrar! Acho que estava enganada...
Desejava com todo o ardor sair daquele mundo, romper a teia que me acorrentava
com malícia e seguir o rumo da minha alma. Estava confusa e perdida, mas tinha
plena consciência que, se transpusesse a fronteira que nos separava, também tu
não me aceitarias!
Conheci justamente nessa límpida noite de lua
cheia aquele que viria a ser inevitavelmente o meu futuro marido. Era um homem
bem mais velho do que eu, alto, seco, quase franzino, de negra barba e olhar
indiferente. Exibia um largo anel no dedo indicador e um dente reluzente; ambos
de oiro.
À hora do jantar, os homens e as mulheres
partilharam excepcionalmente uma só mesa, em sinal de comemoração. Fizeram uma
festa de cor, danças e cantares da minha longa tristeza. Quanto ao meu noivo,
não me dedicou o olhar uma única vez durante longas horas. Brindava-me, sim,
com a sua indiferença, cedendo cobardemente a um compromisso traçado pelo
destino antes de os nossos corpos se terem definido, antes ainda de o nosso
coração chegar a bater! A cerimónia ficou marcada para dali a um mês, data em
que abandonaria o meu povo e seguiria com o dele. Um mês!
Incrédula, precipitei o olhar espelhado no
aglomerado de prédios despidos, na tentativa vã de arranjar coragem para
procurá-los e desistir de tudo. Passaram-se dias, semanas, um mês... Todas as
manhãs, todas as tardes, todas as noites, tinha a irrevogável obrigação de
atendê-lo tal qual uma súbdita, uma escrava, um objecto contemplativo.
Cozinhava para si, lavava-lhe as roupas, cosia-as e remendava-as paciente e
submissamente, acendia a fogueira e dançava para seu contentamento.
Mostrava-lhe, evidentemente, os meus dotes, que era prendada, que iria dar uma
boa mulher e uma boa parideira.
Faltava um dia para o casamento. Somente um dia! E
foi então que o desespero me precipitou para o mundo de cimento; o mundo que
sempre me desprezou e que agora o procurava e via nele a solução única para os
meus males. Resoluta, acordei cedo e desapareci sem dar satisfação a ninguém.
Fui como pude; descalça, de farrapos velhos e sujos numa saia comprida e
rodada; uma trança negra quase até à cintura; umas argolas de oiro torcido.
Aventurei-me.
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