23 de janeiro de 2020

a cigana # 2


Quando era pequena, costumava sentar-me na varanda da sala a comer a sopa; ali, porque sabia que o encontraria àquelas horas, o burrico dos ciganos, cinzento e ossudo e de olhar cansado. Pedia, então, à minha doce e terna avó que desfiasse magníficas e surpreendentes histórias de ciganos, de um povo tão rico e único e incrivelmente fascinante que, naquelas divagações, também eu era um deles; eternamente cigana. 

E talvez chegasse verdadeiramente a sê-lo e não o queira confessar, para que não fujais de mim como de quem tem lepra; para que não tenhais motivos para me odiares e me discriminares, pelas macabras patranhas que em criança vos confiaram.

Li, certo dia, uma curiosa crónica num jornal ou, mais precisamente, numa revista de fim-de-semana, volumosa e de colorida capa, cómoda de folhear. Tratava-se de um artigo escrito por um indonésio; um desabafo sentido de um ser singular que chorava por uma condição que lhe impuseram e da qual não conseguia recuar. Absorvi-a avidamente e fui o mesmo indonésio que descrevia as suas emoções e frustrações para um público que o tão rapidamente leria e esqueceria como se esquece que, um dia, era naquela varanda que gostava de observar o burrico; a minha eterna fome de conhecer os ciganos, de os dissecar de branda forma e interiorizar os seus costumes e valores singulares.

Ainda no artigo em questão, algumas linhas mais adiante, comentava que tinha vergonha de ser indonésio, que o maltratavam e o agrediam e o criticavam e o não aceitavam e o rotulavam pela nação que vestia; que não compreendia por que motivo os seus amigos, os familiares com quem costumava conversar ou tomar a bica no café se haviam tornado assassinos, monstros cruéis que tinham como punhal a morte e a vingança para traçar um destino; o seu por acréscimo.

Porventura, talvez ele seja igualmente um pouco cigano; cigano de nome e de diferença e de opressão e de discriminação.

Nasci num mundo rígido que, desde muito cedo, me cortou terminantemente as asas e a esperança; um mundo bastardo, em que me debatia para mostrar aos outros que existia por mim e não unicamente por aquilo que envergava: o meu povo, a identidade cigana. Provavelmente por esse motivo, consumia os dias à volta de contos fantásticos de sereias, em que o seu sonho era sair do mar, desafiar um pseudo-mundo e conquistar tão somente um coração que lhe estava destinado pelos céus e pelas estrelas. Teria então pernas, a única arma que igual aos outros me tornaria, pois sentia que o não era. Todavia, os anos e a vida ensinaram-me que a realidade não é um conto...

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