Logo à nascença, fui comprometida com um rapaz da
mesma etnia. Não o conheci desde sempre. Apenas viria a conhecê-lo muitas
Primaveras depois.
Devo admitir que é revoltante estar noiva por
imposição, não por prazer. Antes, um casamento firmemente vigiado pela
tradição, em que o amor surge com os anos, provavelmente com a acomodação do
casal e a resignação de ambos. Tinha, forçosamente, de obedecer a leis
impostas; leis com o intuito de não serem jamais quebradas; daí a designação de
“leis”.
Chamo-me Odete Oliveira. Odete, nome da minha mãe,
nome igualmente da minha avó, a pessoa mais rica e profunda e encantadora que
algum dia viria a conhecer. Cresci em barracas de chita, casas andantes que
lembram as que os vagarosos caracóis carregam às costas a todo o custo e levam
para onde quer que vão. Nunca tive uma terra; apenas poisos sem significado.
Amigos, tão pouco! Brinquei e falei por momentos com algumas crianças, mas logo
as mães apareciam afogueadas de susto e as tiravam de mim, pelo pecado único de
poucas palavras. Aprendi, então, que falar devia de ser pecado, que o teu Deus
castigava e nos tirava as crianças amigas. Deixei de falar. Anos assim! Nenhuma
palavra proferida, mas, inexplicavelmente, acontecia tudo de novo: uma outra
mãe afogueada que me tirava um amigo sem qualquer explicação. Cresci sem
ninguém e sem compreender o mundo que me circundava. Não sabia por que o meu
quarto era de pano e o teu de tijolos e cimento e tinta da cor das nuvens.
Julgo que me isolava, pois tinha medo de possuir algo e que me fosse retirado
de seguida; mais um castigo a juntar-se aos outros!
Mas esse não era o único medo que tinha. Havia
muitos mais... o medo de andar sozinha nas ruas; medo que me gozassem e me
desprezassem e me apedrejassem, como já tinha acontecido lá na escola. Medo de
uma realidade cingida de mesquinhez e espelhos que reflectiam apenas o que se
queria ver. Deixavam-se de lado as semelhanças que nos uniam, embora se
tratasse apenas de contornar e adiar um problema, não de resolvê-lo; virar-lhe
as costas e deixá-lo desenvolver-se em barracas, em bairros de lata invisíveis
de dor e sofrimento! Já reparaste que, por vezes, torna-se muito mais simples
não ver? Já reparaste?!
Tive, contudo, uma única amiga a quem me afeiçoei
de verdade. Falava comigo abertamente, sem rodeios, e dava-me atenção. Acho que
nos entendíamos bem. Confiávamos segredos. Riamo-nos. Uma vez, confessei-lhe
que era pobre. Ela afagou-me com carinho e disse: “Eu também”. Senti-me, então,
verdadeiramente unida a si, duas almas numa só, por termos algo em comum.
Porém, um dia, quando brincávamos no recreio,
esquecidas da hora e da responsabilidade de regressar à sala de aula, fez-me
chorar.
- Ela é rica. – apontei
para uma casa que espreitava a escola com impetuosidade - Tu não és, pois não?
Mas não me respondeu; os seus olhos buscando os meus.
- Ela é rica. – insisti – Tem cortinas! – fiz uma
pausa e voltei-me para ela com o receio de que me desiludisse – Tu tens
cortinas?
- Sim, tenho cortinas – respondeu-me, surpresa.
- Então, não és pobre! Mentiste-me!- e lembro-me
que corri para longe, para que as lágrimas me caíssem com facilidade e a dor
pudesse percorrer-me sem mentiras ao redor. Contudo, ainda hoje, guardo a sua
serena presença no meu coração, tendo a consciência de que aquela sorridente
menina loira de tranças e sardas e saia rodada foi e será sempre a melhor amiga
que algum dia terei.
Nunca me importei de não pertencer a um lugar, ou
a uma aldeia, ou a uma vila, ou a uma cidade, como tu certamente pertences.
Escolhi, então, por minha própria iniciativa, uma terra e dei-ma; por ser
bonita, por ter presenciado nela o pôr-do-sol mais limpo que algum dia pude
imaginar, por nela te ter conhecido. Baptizei-me em Aveiro, sozinha, há muitos
anos atrás, quando ainda os prédios grandes não existiam, somente os outros
mais rasteiros, onde, todos os dias, uma menina me avistava da varanda, de vago
sorriso nos lábios distantes. Sou, deste modo, aveirense. E, quando, a partir
daí, me perguntaram na escola de onde vinha, já pude responder, e ninguém mais
se riu de mim.
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