1 de março de 2022

os meus cinco minutos # 57

Em Memorial do Convento assistimos a uma diáspora terrestre - a construção do convento de Mafra que nos atira, sobremaneira, para as ondas reminiscentes dos Descobrimentos. Um D. João V, megalómano, egocêntrico, tirano, será, certamente, o carrasco que três vezes chia, grosso e imundo; o nosso Adamastor ou o nosso Mostrengo que surge do mar de breu e nos faz tremer.

Contam-nos uma história que se mescla com a ficção e cujas linhas diegéticas se intercalam. 

Era uma vez um rei que fez a promessa de levantar um convento em Mafra. Saramago mitiga a imponência desta figura histórica a uma dimensão caricatural, sendo D. João V, muito embora, o paradigma expectável que lança os dados. O seu capricho irá gerar os maiores sacrifícios para que o seu sonho se concretize.

Era uma vez a gente que construiu esse convento, os trabalhadores de Mafra, o herói coletivo que atravessou tormentas e que desafiou o desconhecido, o povo cantado por Camões e Cesário Verde.

Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. A linha diegética do amor dá voz, agora, a Baltasar e Blimunda, uma só personagem que vive um amor puro, verdadeiro, marginal, transgressor, pois não respeita códigos sociais e basta-se a si próprio. Este amor contrapõe-se ao dos reis, em que o verniz estala numa corrida abrupta, assente numa relação meramente artificial que obedece às regras da corte. Não são mais do que dois estranhos que se encontram duas vezes por semana para cumprirem o seu dever: dar um herdeiro à coroa.

Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido e que traça a linha da construção da passarola ou da ciência. Padre Bartolomeu, personagem também ela transgressora, como, aliás, tudo nesta obra, é perseguido pela Inquisição, devido à modernidade do seu espírito científico e à subversão do seu comportamento anticanónico. É uma cárie dentro da igreja, questionando os dogmas eclesiásticos. Formou uma "santíssima trindade" para poder concretizar o seu sonho de voar e arrasta-nos com ele, convidando-nos a acreditar.

Seria nesta esfera que deveria entrar Domenico Scarlatti, uma personagem tímida e envergonhada que permanece discreta, quase só respira, quase só murmura. Seria, eventualmente, uma nova linha de diegese que ninguém deu conta e que pareceu escapar aos mais atentos, a linha das Reflexões do Poeta ou a linha do Encoberto. Figura incómoda para o poder, pela liberdade de espírito e pelo poder libertador e subversivo da sua música, este cúmplice silencioso será um Bandara que anuncia um Quinto Império. A música de Scarlatti inspira os construtores da passarola e cura Blimunda da sua estranha doença causada pela exaustão na recolha das duas mil vontades. O cravo do italiano e a sua música simbolizam o ultrapassar por parte do ser humano de uma materialidade excessiva e o atingir  da plenitude da vida. A ciência e a arte são reveladoras de um espírito de inovação, de tolerância e de abertura ao progresso e à modernidade, tão certo quanto D. Sebastião regressar numa manhã de nevoeiro montado num cavalo branco, entre sombras e dizeres.

Valete Fratres.




24 de novembro de 2021

os meus cinco minutos # 56

 Sempre que olho para as fotos das cheias em Veneza, penso que a vida deveria ser assim. Perante as adversidades, é importante continuar a viver e a acreditar e a sonhar. Um dia de cada vez, como se nada fosse. Sim, temos um elefante na sala; é óbvio, mas vamos lidar com isso da melhor maneira possível.




21 de novembro de 2021

sapatinho fit... ou talvez não # 89

Pela primeira vez na vida, posso dizer que estou fi-nal-men-te a gostar de fazer uma atividade desportiva, o que é algo entusiasmante e estranho ao mesmo tempo. Mais ao menos como descobrir aos 45 anos que, às páginas tantas, até gostamos de favas e só nos apercebemos há coisa de 5 minutitos. 

Desisti do ginásio (há 500 mil anos) e tinha-me metido nas corridas. Já fazia 10 a 13 km limpinhos três vezes por semana. Entretanto, com tanto trabalho, deixei a corrida para trás. Depois, o meu joelho não me permitiu correr mais. Ou caminhar. 

Houve fisioterapia pelo meio e um ano de paragem drástica. 

Em setembro, decidi voltar a fazer algo, embora estivesse consideravelmente limitada a nível de musculatura e não só. Então, por motivos óbvios e altamente pragmáticos, decidi fazer natação. Quem me conhece sabe que esta modalidade não é nova para mim. Feitas as contas, este é, basicamente, o desporto que fiz durante mais tempo em toda a minha existência. Talvez 5 ou 7 anos de natação, com muitas faltas pelo meio e desculpas e mais faltas. 

Tantos anos de prática! Deves ser uma besta na água!, estão vocês a pensar. Mas não. Desenganem-se, meus senhores. Não sou propriamente, o Michael Phelps da Gafanha, nem nada do género...

(Tenho vergonha de ser aveirense, de adorar a minha cidade e de não termos piscinas municipais em Aveiro. Divido-me entre Ílhavo e Gafanha da Nazaré, mas, adiante...) 

Em setembro fui à piscina pela primeira vez. 

O primeiro dia foi sofrido. Fiz 6 piscinas (25 metros x 6) como quem carrega um saco de batatas às costas ao pé coxinho e a fazer o pino ao mesmo tempo (praticamente impossível, eu sei). Custaram-me mais as 6 piscinas do que ter um filho sem epidural... mais coisa, menos coisa. Um inferno. Lá como o outro diz, como passar as cataratas do Niagara de bicicleta. 

Quando disse ao meu aluno João, competidor do Galitos (o melhor clube de Aveiro), que a piscina em peso estava a olhar para mim, que nadava mal, que não conseguia respirar, que foi uma vergonha, que saí 15 minutos mais cedo, porque sou fraquita e não estava a aguentar, o garoto respondeu-me com as palavras mais sábias que ouvi saídas da boca de um miúdo de 17 anos: Mané, NINGUÉM estava a olhar para ti. 

E não. Muito provavelmente, quem está a fazer piscinas a sério (o oposto de mim), não tem tempo nem pachorra para olhar para os outros. 

No dia seguinte, fiz 12 piscinas e, neste momento, faço 50 em 45 minutos (deixem-me já avisar que É ALTAMENTE PROVÁVEL eu enganar-me nas contas; fazer contas debaixo de água não é a mesma coisa do que somar no discernimento lógico e racional da luz seca do dia...). 

Engulo 5 quilos de água pelo caminho (qualquer dia ainda me mandam a conta para casa), mas sinto-me feliz. 

E o desporto deveria ser só isso, certo?


26 de outubro de 2021

os meus cinco minutos # 55

        A ironia e a crítica e o escárnio e o maldizer são o pão nosso de cada dia nos dias de hoje. Porém, felizmente, sempre existiram e sempre vão existir. São uma forma de exorcização e expurgação dos males da sociedade e ajudam-nos a compreender o que nos circunda, a distinguir o bem do mal e a lutar por aquilo em que acreditamos. É o sentido crítico que nos faz ser humanos e nos faz lutar a favor do livre-arbítrio. Ser livre é poder falar.

A nostálgica, antiquíssima e simplíssima poesia trovadoresca foi remotamente cultivada por trovadores na zona norte da Península Ibérica, nos reinos de Portugal, Galiza, Castela, Leão e Aragão, entre os séculos XII a XIV. A vida económica medieval nesta época baseava-se quase exclusivamente na agricultura, sendo que a estrutura social resultava das formas feudais de senhor e vassalo. A sociedade encontrava-se, assim, estratificada em três ordens: clero, nobreza e povo. Entretanto, como sabemos, a literatura, inicialmente, não nasceu para todos; somente para alguns, os mais abastados e ociosos. O povo estava demasiado ocupado a trabalhar e a tentar sobreviver.

A designação trovador é de origem provençal e designa os autores e intérpretes que introduziram nas cortes composições poéticas de índole amorosa acompanhadas de música. A poesia medieval surgia, desta forma, associada à música e ao canto e animava os serões da corte, sendo que o idioma por excelência do lirismo peninsular era o galego-português.

A sátira medieval existiu, de facto, e concretizou-se nas cantigas de escárnio e de maldizer que versavam temáticas diversas da atualidade medieval, nomeadamente, a crítica de costumes. A paródia ao amor cortês revia-se na sátira à morte de amor e na crítica à hiperbolização das qualidades da mulher amada. Por conseguinte, as temáticas mais versadas pelas cantigas de escárnio e de maldizer eram de natureza satírica e podiam estar relacionadas com acontecimentos políticos, sociais, culturais. Na sátira medieval o recurso expressivo mais utilizado era, então, a ironia. Nas Cantigas de Maldizer, a crítica era realizada aberta e diretamente; nas Cantigas de Escárnio havia uma sátira indireta. Estas últimas mesclam-se direta e inequivocamente com a alegoria associada ao Sermão de Santo António aos Peixes de Padre António Vieira, séculos adiante.

No seu significado etimológico, alegoria significa dizer uma coisa por outra. Por exemplo, a justiça é representada alegoricamente por uma mulher de olhos vendados que segura uma balança nas mãos, já a paz é figurada por uma pomba, ou a crueldade por um tigre. Assim, o funcionamento da alegoria é fundamental na interpretação dos textos que representam e comunicam significados ocultos de ordem religiosa, moral ou política.

Logo, a escolha da alegoria para o Sermão foi mais do que óbvia. Foi necessária e imprescindível. Emergente até, sendo que esta obra surgiu no fatídico século XVII. Foi neste mesmo século que Portugal vivenciou o desaparecimento do rei D. Sebastião em Alcácer Quibir e a consequente perda da independência e domínio filipino (1581-1640) que incapacitaram e castraram Portugal na sua mais verdadeira essência. O poder da Inquisição ajudou à festa e o Barroco, arte lindíssima que vigorou em Portugal durante todo o século XVII e na primeira metade do século seguinte, deixou-nos um custo demasiado alto a pagar. O Barroco veio para intimidar, para fazer tremer as alminhas todas e fazer cair os santos do altar. E conseguiu-o. Daqui adveio, todavia, uma deliciosa teatralidade, os contrastes (luz e sombra), o movimento e o exagero decorativo, de modo a provocar o êxtase e a emoção, que eram conseguidos na perfeição.

O Sermão assenta numa alegoria, pois através dos peixes, o orador critica os seres humanos, mencionando as suas virtudes e os seus defeitos. As virtudes dos peixes são, por contraste, a metáfora dos defeitos humanos (“Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes, e grande afronta e confusão para os homens!”). Os defeitos dos peixes são também enunciados, sendo o maior deles o de se comerem uns aos outros (“Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós.”), manifestando-se a crítica à exploração social. São quatro os peixes evocados: os Roncadores – personificam a arrogância: “É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?!”; os Pegadores – representam o parasitismo/oportunismo: “ […] sendo pequenos, não só se chegam aos outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados, que jamais os desferram”; os Voadores – simbolizam a ambição desmedida: “Não contente com ser peixe, quiseste ser ave […]”; e o Polvo – encarna a traição e a hipocrisia: “[…] monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor!”.

Padre António Vieira foi uma das mais influentes personalidades do século XVII, destacando-se pela sua intervenção política e pela sua ação missionária. Foi igualmente, permitam-me dizê-lo, um trovador dos seus tempos. O padre era mestre na arte da eloquência – docere, delectare, movere -, pois falava bem; mais, falava em público de forma estruturada e deliberada, com a intenção de informar, persuadir ou entreter os ouvintes. As funções da sua oratória eram senão arrebatar ou deleitar, ensinar e moralizar e mover ou influenciar o comportamento do ouvinte, incentivando-o à ação. 

O Sermão foi o género literário que escolheu para o seu discurso oral dirigido a um auditório. O propósito era moralizador. Contra factos não há argumentos. No exórdio, e tendo como ponto de partida o conceito predicável (vós sois o sal da terra), o orador diz que a “terra” está corrupta, mas reconhece que o mal não está só do lado dos pregadores. Os ouvintes também têm culpa. Santo António é apresentado como exemplo do bom pregador, como modelo a seguir para moralizar os ouvintes (a terra). Diz Padre António Vieira: “Santo António foi o sal da terra, e foi o sal do mar”. Todo o sermão é, pois, um panegírico em torno da sua figura. Assim, à semelhança deste santo, também o Orador irá pregar aos peixes, já que os seres humanos não o ouvem: “ […] quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes […]”.

Ao longo do discurso, na Exposição/ confirmação, Padre António Vieira interage com os seus ouvintes e tenta perseguir os grandes objetivos do Sermão: ensinar – moralizar; agradar – cativar os seus ouvintes, despertando as suas emoções; e persuadir – apelar e convencer da necessidade de mudança através de uma argumentação sustentada.

No momento de comprovação ou demonstração das afirmações apresentadas, para defender a sua tese, recorre a vários tipos de argumentos ilustrativos e convincentes: de autoridade – as citações bíblicas, por exemplo; proverbiais ou de sabedoria popular; por analogia – argumenta a partir do exemplo de Santo António; por experiência – invoca a sua vivência; e históricos – recorre a exemplos da tradição histórica.

O Sermão é, desta feita, uma sátira social. Padre António Vieira critica a exploração e a ganância humana, particularmente aquela que é exercida pelos colonos sobre os índios. À persuasão, fim último do Sermão, associam-se as intenções de instruir e de deleitar. Assim, a escrita de Padre António Vieira é marcada por um grande virtuosismo. Os recursos expressivos mobilizados, a construção frásica rigorosa e a riqueza vocabular reforçam o seu estilo lógico e engenhoso. Além doa mais, a sedução dos seus raciocínios e o seu tom combativo tornam Padre António Vieira um escritor ímpar.

Em suma, as Cantigas de Escárnio e Maldizer, bem como o Sermão de Santo António aos peixes são uma crítica subtil e entredentes de quem usa uma máscara para poder exprimir-se e expor uma realidade “fea, velha e sandia”. A dissimulação e as meias verdades são um recurso que, por vezes, temos de usar num mundo em que não podemos, muitas vezes, dizer tudo aquilo que queremos. Esta forma de arte é essencial para incitar a reflexão e levar a uma tomada de posição. No fundo, é uma forma bonita de mostrar uma realidade crua e cruel. No século XXI, em Portugal, as alegorias, felizmente, são apenas formas de grande beleza, pois escolhemos ser livres. Critiquemos com os livros, o teatro, as stand-up comedies, os memes, as anedotas, e mais, muito mais. Continuemos a fazer arte, de uma maneira ou de outra.


20 de março de 2021

mané explika

Olá! Olá!

Tudo bem?

Sim, temos novos projetos por cá.

Projetos GRANDES que nos enchem as mãos e a alma.

Este é o meu projeto - o MANÉ EXPLIKA - que oferece um serviço de qualidade - presencial (Aveiro) e à distância - de Explicações de Português e Inglês (2º, 3º ciclos e Secundário), preparação para os Exames Nacionais de Português e Inglês, preparação para os exames maiores de 23, ensino de Português a Estrangeiros e Formação nas mais diversas áreas, tais como Inglês, Comunicação Relacional e Interpessoal, Comunicação Verbal e não Verbal, Gestão de Stress e Inteligência Emocional, Negociação, entre outros.

MANÉ EXPLIKA nasceu de uma necessidade; a necessidade de promover um trabalho que dura há mais de 20 anos, mas que só agora ganha voz.

Vamos aprender juntos?

Contacto: maneexplika@gmail.com


27 de fevereiro de 2021

os meus cinco minutos # 54

 

O Mosteiro da Batalha faz parte do Património Mundial da UNESCO e é certo que a Lenda da Abóbada integra, invariavelmente, o nosso património imaterial e onírico. 

A importância da defesa do que é nacional é aqui corroborada, já que a edificação do Mosteiro da Batalha, nomeadamente da abóbada, é, senão, a construção de uma epopeia, desta vez, terrestre e não marítima. Logo, Os Lusíadas, de Luís de Camões, representam a gesta dos Descobrimentos num plano mítico e grandiloquente, assim como A Abóbada, de Alexandre Herculano, encerra em si o espírito epopeico de cruzada: a materialização do Império Português. Vasco da Gama será o herói individual da primeira obra, representante de todo um saber, sendo que o cego, de aspeto venerável e pensativo, sentado “sobre um troço de fuste”, será, inequívoca e inevitavelmente, o herói da segunda. O velho Afonso Domingues, que lutou ao lado de el-rei na bendita batalha, de ânimo rico de alto imaginar, mergulhado em meditações profundas, de maçãs do rosto elevadas e o perfil do rosto quase perpendicular, simbolizando o espírito inabalável, será, pois, o desbravador dos mares e de adamastores e de mestres Ouguets. 

Claro que o povo português continua a ser o herói coletivo, nobre e lutador, competente, disposto a morrer de forma exacerbada por aquilo em que acredita, desafiando tudo e todos, o próprio destino, com um sentimentalismo romântico que o levará para além do mundo terreno, em Naus a haver.

23 de fevereiro de 2021

os meus cinco minutos # 53

 O conto “O Acidente” de Gao Xingjian retrata um acidente de trânsito ocorrido numa rua da China, em frente a uma oficina de conserto de rádios. Primeiramente, o escritor descreve os acontecimentos que antecederam o mesmo: as pessoas que caminhavam pelas ruas; um homem de bicicleta com um carrinho de bebé preso à frente, pedalando diagonalmente pela rua; os carros que por ali circulavam; e o autocarro que vinha do lado contrário sem parar. Finalmente, quando o homem da bicicleta segue em direção ao autocarro, o motorista começa a travar, mas não conseguiu parar a tempo, atingindo-o fatalmente. Temos a perceção de que, quando o homem da bicicleta viu que o autocarro o ia atropelar, empurrou propositadamente o carrinho do bebé para fora do caminho, para, assim, poder salvá-lo. Após o autocarro ter embatido no homem, a bicicleta ficou completamente destruída, mas o bebé sobreviveu.

Este conto começa com uma descrição pormenorizada da cidade, como se o escritor nos levasse a percorrer uma metrópole asfixiante e castradora, à hora de ponta, fazendo-nos mergulhar num universo idêntico ao de Cesário Verde, o observador acidental. Também nós nos damos conta da falta de solidariedade presente em algumas falas dos transeuntes que representam a cidade anónima e disfórica:“- Ele procurava a morte. Nem com as buzinadelas e travagens deu passagem e atirou-se claramente para debaixo do autocarro… - retorquiu uma mulher que usava mangas de alpaca, uma revisora que acabava de descer do autocarro. “

Ainda o desprezo pelo outro se torna nítido quando alguém comenta “- Eu só quero é passar também.” Desta forma, o sentimento de clausura que a cidade provoca acaba por ser o palco de um acidente mortal, em que a vítima não conseguiu, também ela, escapar a este espaço exíguo, que a confinava a uma existência sufocante. Assim, a cidade, símbolo do desenvolvimento e do progresso, aparece como uma Babel opressora, paradigma de todos os males e promotora de um individualismo gritante. Este tipo de comportamento é, muitas vezes, frequente em meios onde as pessoas não se conhecem, como é o caso das grandes cidades: “Nesta cidade de vários milhões de habitantes, só a família e alguns amigos próximos deviam saber quem era e, neste momento, certamente nem estavam ao corrente do sucedido, sobretudo se o defunto não tivesse consigo qualquer documento que permitisse a sua identificação.”

O final do conto é, na minha opinião, um pouco desconcertante. Tudo cai no esquecimento, como se nada tivesse acontecido, como se os sentimentos e as pessoas não fossem importantes numa cidade fria, artificial e opressora que agoniza o leitor, por se encontrar impotente e não conseguir levantar-se e mudar o rumo da história: a morte é, assim, inexorável e a esperança não parece ser alcançável.

19 de janeiro de 2021

os meus cinco minutos # 52

 “Vicente” é um conto que faz parte da obra Os bichos, de Miguel Torga. Altamente simbólico, sugestivo, provocador e interventivo, “Vicente” lança uma mensagem de conforto e de esperança numa altura em que o Estado Novo chicoteava Portugal e em que o povo necessitava, como de pão para a boca, de poder acreditar na sua liberdade e num futuro, quiçá, risonho.

Assim, neste conto, o Senhor reconheceu que a maldade do ser humano na Terra era incomensurável, que, inevitavelmente, todos os seus pensamentos e desejos pendiam única e inexoravelmente para o mal. Amargamente arrependido de ter criado esta espécie sobre a face da Terra, o Criador sofria. Nisto, Deus omnipotente e Deus omnipresente, eis que decide eliminar o produto, corrompido, fruto da sua criação e dos seus devaneios. Então, o Senhor disse: «Eliminarei da face da Terra o homem que Eu criei, e, juntamente com o homem, os animais domésticos, os répteis e as aves dos céus, pois estou arrependido de os ter feito».

Noé, no entanto, era um homem justo e perfeito, entre os homens do seu tempo, e escapava ileso a todo esse ato acusatório, a toda uma censura encerrada e lacrada a lápis azul.

Então, Deus disse a Noé: «Constrói uma arca de madeiras resinosas. Dividi-la-ás em compartimentos e calafetá-la-ás com betume, por fora e por dentro. Hás de fazê-la desta maneira: o comprimento será de trezentos côvados, a largura de cinquenta côvados e a altura de trinta côvados. Ao alto, farás nela uma janela, à qual darás dimensão de um côvado. Colocarás a porta da arca a um lado, construirás nela um andar inferior, um segundo e um terceiro andar, pois vou lançar um dilúvio, que inundando tudo, eliminará debaixo do céu todo o ser animal, com sopro de vida».

Ordenou implacavelmente!

E Noé assim o fez, cabisbaixo, fraco, humano, submisso, sem questionar, rompendo-se, logo ali, todas as fontes do grande abismo, e abrindo-se as cataratas do céu. Naquele mesmo dia, Noé entrou na arca com Sem, Cam e Jafet, seus filhos, sua mulher e as três mulheres dos seus filhos; juntamente com eles, entraram ainda os animais selvagens segundo as suas espécies, os animais domésticos segundo as suas espécies, os répteis que se arrastam pela Terra, segundo as suas espécies e todos os animais voláteis, todas as aves, tudo quanto possui asas, segundo as suas espécies. A chuva caiu, torrencial, injusta e agressiva, sobre a Terra, durante quarenta dias e quarenta noites. As águas cresceram, sedentas, e levantaram a arca, que foi elevada por sobre a Terra. Iam engrossando, turbulentas, subindo muito acima da Terra. A arca flutuava à superfície e ZÁS! todas as criaturas que se moviam na Terra pereceram.

Assim.

Assim o conto.

Assim o ponto de partida: o castigo de Deus devido à maldade do ser humano.

Assim: Deus ter decidido castigar as suas criaturas devido à corrupção reinante, fazendo com que um dilúvio caísse sobre a Terra.

Deus é grande e é pai e é magnânimo - como António de Oliveira, aliás - por isso, iria preservar Noé e seus filhos e cada par de animais existentes, fazendo-os embarcar na Arca.

Decorridos quarenta dias, não obstante, Vicente decidiu fugir.

As pessoas e os animais presentes na Arca assistiram à partida de Vicente com «respeito calado e contido», ll. 20-21. Quando Deus perguntou pela primeira vez a Noé onde estava Vicente, todos «ficaram petrificados» pelo medo, l. 29.

Os sentimentos de «angústia», l. 68, e de humilhação – «fauna desiludida e humilhada» - persistiam naquela arca malfadada, pois não era certo, não senhor, lobos coabitarem com cordeiros, traindo a sua natureza e, pior!, o seu instinto.

Vicente - nome de homem - que simboliza aquele que decide libertar-se das amarras do fascismo e do Estado Novo, acaba por ser a chama que a todos alumia; seria ele o responsável pelo alento dos seus corações e pela liberdade que poderia dali advir.

Então, Deus e Vicente lutaram e esbracejaram frente a frente.

Travavam, agora, uma luta desigual; Vicente, onde já se viu?, um pequeno e frágil corvito de nada, a desafiar um Deus Todo Poderoso? O ser humano contra o Estado Novo! A escravidão contra a liberdade!

Onde já se viu?

O «pequeno penhasco», que, embora não passando disso, era, então, uma promessa de Terra, do fim do sacrifício de 40 dias na Arca.

Os seus passageiros, admirados e felizes por constatarem o ato de rebelião de Vicente – afinal um deles! – acreditavam, ainda que a medo, acreditavam que as amarras seriam quebradas e que o corvo os vingaria da provação sofrida.

Deus - vingativo, arrogante, temerário - para obrigar Vicente a regressar à Arca, fez com que as águas subissem de modo a quase taparem o pequeno penhasco sobre o qual o corvo estava pousado; mas Vicente, apesar de fustigado pelas águas mandadas pelo Senhor misericordioso, resistiu de tal modo, com tal coragem, com tal vontade de ser livre, que Deus cedeu e as águas desceram, obedientes.

Vicente venceu.



29 de dezembro de 2020

o sapatinho foi à rua #527

 Estou a adorar estas mini férias.

Hoje em modo tweed-total!







camisola de malha: Bershka
calças cintura subida: Sacoor
botins: Quebramar
sobretudo: Bershka
boina: Zara

22 de dezembro de 2020

o sapatinho foi à rua # 526

Estes dias têm sido mais calminhos.

Ainda há trabalho para acabar, muito para organizar e umas comprinhas de última hora para fazer.

Tenho visto mais Netflix e tenho acordado cedo para que o dia renda e consiga fazer tudo o que tenho planeado.

O mais importante é estar com a família e com aqueles que mais amamos, ainda que recuados e com todas as precauções.

Apaixonei-me pelos losangos e pelo xadrez numa combinação ousada.

A minha mug do Harry Potter serve para me lembrar que tenho de beber mais água e nunca estou para aí virada.

Cuidem-se!




casaco de malha: Zara (secção de homem)

camisa: zara

jeans: Pull & Bear

sobretudo: Zara (seção de homem)

gorro: Tenth

meias: H&M

mug: Harry Potter na Fnac