A Farsa de Inês Pereira trata-se da mais famosa farsa escrita por Gil Vicente. Altamente satírica e hilariante, é nada mais nada menos do que a materialização do provérbio "Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube".
Através do recurso a personagens-tipo e ao cómico de linguagem, de caráter ou de situação, o dramaturgo pretende criticar a moça que manifesta uma ambição desmedida de promoção social, a mulher falsa que engana o marido, o Escudeiro pretensioso, autoritário e cobarde, o marido ingénuo e enganado, o Ermitão devasso que não respeita a Deus, falso religioso, (comportamentos imorais por parte de elementos do clero), a Alcoviteira, Brígida Vaz, sempre interessada em promover uniões e os Judeus preocupados com o seu próprio umbigo (os excomungados, que, pelo pecado único de serem judeus, nem o Diabo os quis na sua barca, que fossem, antes, a reboque, pois então).
Ufa!
Deixem-me respirar um bocadinho, que este Gil Vicente não brinca em serviço.
Inês é uma jovem preguiçosa e idealista (não o são todas as adolescentes?) que anseia deixar o seu estado de solteira e a vida de "canseira" e de "cativeiro" que leva, valorizando a liberdade acima de tudo. Vê-se pressionada a casar com Pêro Marques, o "asno", lavrador simples e sem cultura, ingénuo, trabalhador, honesto, boçal (privado de inteligência), que não se sabe comportar e que representa, metonimicamente, um Portugal analfabeto, mas está encantada pelo galante combatente, Brás da Mata, que representa o "cavalo". Elegante, mentiroso, desleal, pelintra, galanteador, cobarde e parasita, representa uma nobreza ociosa e sem valores.
Todavia, no meio de tanta degradação, é, sobretudo, a Inês Pereira que Gil Vicente decide apontar o
dedo, antes ainda da pobre coitada ter feito qualquer decisão.
A rapariga apresenta densidade psicológica e evolui ao longo da peça. "Muito
fantesiosa", constrói uma imagem idealizada de marido: "Porém, não hei de
casar senão com homem avisado, ainda que pobre pelado, seja discreto em
falar". Para ela, o facto de escolher um marido pobre não era problema; o
importante era que fosse inteligente e soubesse tanger viola,
independentemente dos seus traços físicos: "Que seja homem mal feito,
feio, pobre, sem feição, como tiver
discrição, não lhe quero mais proveito. E saiba tanger viola e coma eu
pão e cebola".
Na volta, digo eu, a Inês é bem menos exigente do que a maior
parte do pessoal do século XXI, uma vez que a beleza para ela não era importante
(outros valores mais altos se levantam), nem o dinheiro, mas sim a
inteligência e a cultura.
Honestamente, não a critico. Gosta de homens
inteligentes e cultos e o dinheiro não é o mais importante. Na prática,
Inês revela ideais dignos de um Quinto Império.
Na
realidade, aqui que ninguém nos ouve, a pobre da criatura estava
tramada desde o início, pois Gil Vicente não lhe deu qualquer escolha
minimamente decente, válida ou justa, que a conduzisse a um final feliz:
ou casava com Brás da Mata por amor, sendo invariavelmente enganada, como se
verificou, ou casava por dinheiro com alguém que, se remontasse aos dias
de hoje, seria o típico animal, burro que nem uma porta, que come de boca
aberta, arrota à mesa e diz palavrões, mais coisa menos coisa. Ingénua, também ela foi
enganada, mas ninguém se chegou à frente para a defender, fosse por que
motivo fosse, nem os Doze de Portugal.
No fundo, Inês
representa todas as jovens mulheres da altura, enganadas por uma nobreza ociosa e arruinada, decorrente da centralização das riquezas provindas da expansão na corte.
Depois de ter
sido "derrubada" pelo "cavalo", Brás da Mata, Inês, já que não pode ter um Richard Gere, escolhe a personagem que representa o "asno", o lavrador Pêro Marques,
pois "Quero tomar por esposo quem se tenha por ditoso de cada vez que me
veja. Por usar de siso mero, asno que me leve quero, e não cavalo
folão. Antes lebre que leão, antes lavrador que Nero" Inês Pereira,
depois de ter sido iludida por Brás da Mata, prefere um marido "manso".
No final da peça, torna-se materialista, calculista e vingativa, aceitando o destino e abraçando um ponto de vista redutor, fruto de um Portugal estagnado e moribundo.
É a hora?