A
ironia e a crítica e o escárnio e o maldizer são o pão nosso de cada dia nos
dias de hoje. Porém, felizmente, sempre existiram e sempre vão existir. São uma
forma de exorcização e expurgação dos males da sociedade e ajudam-nos a
compreender o que nos circunda, a distinguir o bem do mal e a lutar por aquilo
em que acreditamos. É o sentido crítico que nos faz ser humanos e nos faz lutar
a favor do livre-arbítrio. Ser livre é poder falar.
A nostálgica,
antiquíssima e simplíssima poesia trovadoresca foi remotamente cultivada por
trovadores na zona norte da Península Ibérica, nos reinos de Portugal, Galiza,
Castela, Leão e Aragão, entre os séculos XII a XIV. A vida económica medieval nesta
época baseava-se quase exclusivamente na agricultura, sendo que a estrutura
social resultava das formas feudais de senhor e vassalo. A sociedade
encontrava-se, assim, estratificada em três ordens: clero, nobreza e povo. Entretanto,
como sabemos, a literatura, inicialmente, não nasceu para todos; somente para
alguns, os mais abastados e ociosos. O povo estava demasiado ocupado a
trabalhar e a tentar sobreviver.
A
designação trovador é de origem provençal e designa os autores e intérpretes
que introduziram nas cortes composições poéticas de índole amorosa acompanhadas
de música. A poesia medieval surgia, desta forma, associada à música e ao canto
e animava os serões da corte, sendo que o idioma por excelência do lirismo
peninsular era o galego-português.
A
sátira medieval existiu, de facto, e concretizou-se nas cantigas de escárnio e
de maldizer que versavam temáticas diversas da atualidade medieval, nomeadamente,
a crítica de costumes. A paródia ao amor cortês revia-se na sátira à morte de
amor e na crítica à hiperbolização das qualidades da mulher amada. Por
conseguinte, as temáticas mais versadas pelas cantigas de escárnio e de
maldizer eram de natureza satírica e podiam estar relacionadas com
acontecimentos políticos, sociais, culturais. Na sátira medieval o recurso
expressivo mais utilizado era, então, a ironia. Nas Cantigas de Maldizer, a
crítica era realizada aberta e diretamente; nas Cantigas de Escárnio havia uma
sátira indireta. Estas últimas mesclam-se direta e inequivocamente com a
alegoria associada ao Sermão de Santo António aos Peixes de Padre
António Vieira, séculos adiante.
No seu significado etimológico, alegoria significa
dizer uma coisa por outra. Por exemplo, a justiça é representada alegoricamente
por uma mulher de olhos vendados que segura uma balança nas mãos, já a paz é
figurada por uma pomba, ou a crueldade por um tigre. Assim, o funcionamento da
alegoria é fundamental na interpretação dos textos que representam e comunicam
significados ocultos de ordem religiosa, moral ou política.
Logo, a escolha da
alegoria para o Sermão foi mais do que óbvia. Foi necessária e imprescindível.
Emergente até, sendo que esta obra surgiu no fatídico século XVII. Foi neste
mesmo século que Portugal vivenciou o desaparecimento do rei D.
Sebastião em Alcácer Quibir e a consequente perda da independência e domínio
filipino (1581-1640) que incapacitaram e castraram Portugal na sua mais verdadeira
essência. O poder da Inquisição ajudou à festa e o Barroco, arte lindíssima que
vigorou em Portugal durante todo o século XVII e na primeira metade do século
seguinte, deixou-nos um custo demasiado alto a pagar. O Barroco veio para
intimidar, para fazer tremer as alminhas todas e fazer cair os santos do altar.
E conseguiu-o. Daqui adveio, todavia, uma deliciosa teatralidade, os contrastes
(luz e sombra), o movimento e o exagero decorativo, de modo a provocar o êxtase
e a emoção, que eram conseguidos na perfeição.
O
Sermão assenta numa alegoria, pois através dos peixes, o orador critica os
seres humanos, mencionando as suas virtudes e os seus defeitos. As virtudes
dos peixes são, por contraste, a metáfora dos defeitos humanos
(“Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes, e grande afronta e confusão
para os homens!”). Os defeitos dos peixes são também enunciados, sendo o maior deles o de se
comerem uns aos outros (“Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade,
considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós.”), manifestando-se
a crítica à exploração social. São quatro os peixes evocados: os Roncadores –
personificam a arrogância: “É possível que sendo vós uns peixinhos tão
pequenos, haveis de ser as roncas do mar?!”; os Pegadores – representam o
parasitismo/oportunismo: “ […] sendo pequenos, não só se chegam aos outros maiores,
mas de tal sorte se lhes pegam aos costados, que jamais os desferram”; os Voadores
– simbolizam a ambição desmedida: “Não contente com ser peixe, quiseste ser ave
[…]”; e o Polvo – encarna a traição e a hipocrisia: “[…] monstro tão
dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente
traidor!”.
Padre
António Vieira foi uma das mais influentes personalidades do século XVII, destacando-se
pela sua intervenção política e pela sua ação missionária. Foi igualmente,
permitam-me dizê-lo, um trovador dos seus tempos. O padre era mestre na arte da
eloquência – docere, delectare, movere -, pois falava bem; mais, falava
em público de forma estruturada e deliberada, com a intenção de informar, persuadir
ou entreter os ouvintes. As funções da sua oratória eram senão arrebatar ou
deleitar, ensinar e moralizar e mover ou influenciar o comportamento do
ouvinte, incentivando-o à ação.
O Sermão foi o género literário que escolheu para o
seu discurso oral dirigido a um auditório. O propósito era moralizador. Contra
factos não há argumentos. No
exórdio, e tendo como ponto de partida o conceito predicável (vós sois o sal da terra), o orador diz que a “terra”
está corrupta, mas reconhece que o mal não está só do lado dos pregadores. Os ouvintes
também têm culpa. Santo António é apresentado como exemplo do bom pregador,
como modelo a seguir para moralizar os ouvintes (a terra). Diz Padre António
Vieira: “Santo António foi o sal da terra, e foi o sal do mar”. Todo o sermão
é, pois, um panegírico em torno da sua figura. Assim, à semelhança deste santo,
também o Orador irá pregar aos peixes, já que os seres humanos não o ouvem: “
[…] quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já
que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes […]”.
Ao
longo do discurso, na Exposição/ confirmação, Padre António Vieira interage com
os seus ouvintes e tenta perseguir os grandes objetivos do Sermão: ensinar –
moralizar; agradar – cativar os seus ouvintes, despertando as suas emoções; e persuadir
– apelar e convencer da necessidade de mudança através de uma argumentação
sustentada.
No momento de
comprovação ou demonstração das afirmações apresentadas, para defender a sua
tese, recorre a vários tipos de argumentos ilustrativos e convincentes: de
autoridade – as citações bíblicas, por exemplo; proverbiais ou de sabedoria
popular; por analogia – argumenta a partir do exemplo de Santo António; por
experiência – invoca a sua vivência; e históricos – recorre a exemplos da
tradição histórica.
O Sermão é,
desta feita, uma sátira social. Padre António Vieira critica a exploração e a
ganância humana, particularmente aquela que é exercida pelos colonos sobre os
índios. À persuasão, fim último do Sermão,
associam-se as intenções de instruir e de deleitar. Assim, a escrita de Padre
António Vieira é marcada por um grande virtuosismo. Os recursos expressivos
mobilizados, a construção frásica rigorosa e a riqueza vocabular reforçam o seu
estilo lógico e engenhoso. Além doa mais, a sedução dos seus raciocínios e o
seu tom combativo tornam Padre António Vieira um escritor ímpar.
Em
suma, as Cantigas de Escárnio e Maldizer, bem como o Sermão de Santo António
aos peixes são uma crítica subtil e entredentes de quem usa uma máscara
para poder exprimir-se e expor uma realidade “fea, velha e sandia”. A dissimulação
e as meias verdades são um recurso que, por vezes, temos de usar num mundo em
que não podemos, muitas vezes, dizer tudo aquilo que queremos. Esta forma de
arte é essencial para incitar a reflexão e levar a uma tomada de posição. No
fundo, é uma forma bonita de mostrar uma realidade crua e cruel. No século XXI,
em Portugal, as alegorias, felizmente, são apenas formas de grande beleza, pois
escolhemos ser livres. Critiquemos com os livros, o teatro, as stand-up
comedies, os memes, as anedotas, e mais, muito mais. Continuemos a fazer arte,
de uma maneira ou de outra.