19 de fevereiro de 2019

os meus cinco minutos # 28

Há uns anos, fiz uma surpresa ao Nuno e reservei uma mesa no restaurante Adega do Confrade, em Aveiro.
Já não me recordo se era uma data especial, mas adiante.
Sei que telefonei para o número que estava registado na internet e falei com uma senhora a marcar a mesa, em nome de Manuela Simões, para as oito horas.
Era sábado à noite.
Não fazia frio.
Estava uma noite amistosa e a lua espiava-nos do alto, impaciente, de pé trémulo, como quem espera algo.
Acabámos por ir lá jantar, à Adega do Confrade, e a experiência foi muito positiva.
A decoração era típica, a fazer lembrar os restaurantes que vamos com os nossos pais e com a família toda junta, e a comida era simplesmente deliciosa.

Na realidade, do que mais gostei foi do atendimento.
A empregada de mesa era simpática, atenciosa e prestável.
Digam o que disserem, a simpatia é que nos faz querer voltar a algum sítio.
Como um porto seguro.
Um abraço apertado que não conseguimos explicar.
Foi o que senti.
Que a senhora que nos serviu nos apertou contra si e nos fez sentir em casa.

Quando saímos do restaurante, eu o Nuno falávamos sobre isso mesmo; que há poucos empregados  tão competentes e esforçados relativamentes àquilo que fazem; que se dedicam de corpo e alma, genuinamente, de unhas e dentes, ao seu trabalho, como se fossem donos e senhores daquele espaço e daquelas mesas e daquela paixão e se entretivessem a colecionar paixões; clientes felizes e satisfeitos.
Sempre me ensinaram que a isso se chama brio.
E o brio anda sempre de mãos dadas com a honra.

A propósito de uma conversa que tinha tido com o Norberto há uns dias, de como facilmente recorremos ao livro de reclamações para mostrar ao mundo a falta de zelo de alguém, mas nunca fazemos o contrário e nunca enlevamos as qualidades de um profissional capaz e abalizado, decidi telefonar novamente para o mesmo número que havia feito a reserva no restaurante e elogiar aquela profissional.
Pareceu-me bem.
O Nuno olhou-me; provavelmente a pensar que a situação poderia ser evitada.
Digo eu.

Boa noite. O meu nome é Manuela Simões. Tinha reservado mesa no restaurante Adega do Confrade e pretendia falar com a gerente, se faz favor.
A minha voz não roçava a simpatia, não senhor. Roçava mesmo a frieza humana, típica dos humanos, de uma forma geral.
Do outro lado, ouviu-se uma voz reticente e abafada.
Sim... Sou eu..

Olhe, estou agora mesmo a sair do restaurante e queria falar da vossa funcionária Não-me-recordo-do-nome.
Pois não. Diga. Aconteceu alguma coisa...?
A voz crescia arrastada e suspensa. Reticente, como se esperasse o pior, como se uma notícia má viesse a caminho de forma avassaladora e a fosse desfazer em pedaços.

Julgo que empolei e dramatizei a seriedade do assunto, de forma intencional, como se quisesse provar algo a alguém; provavelmente a mim mesma.
Não. Só queria dizer que a Não-me-recordo-do-nome nos atendeu de forma exemplar e que revelou ser uma funcionária muito competente e profissional.

Foi neste momento que suavizei a voz.
Decerto.
Como se desistisse das leis e da burocracia e do antropofagismo humanos e falasse unicamente com o coração.
Sabem, como quando falamos com paixão e parece que o peito se nos enche e damos ao outro o melhor de nós?
Foi assim.
Sabe, tinha mesmo de lhe dizer isto.

Senti um silêncio do outro lado da linha.
Não sei se esse silêncio foi real; se existiu de verdade.
Mas eu senti-o.
Como um suspiro de alívio e contentamento, de quando nos sentimos apertados e, de repente, nos largam e nos deixam ir e ficamos livres.
Sabem?
Foi assim.

Obrigada. Muito obrigada.
E senti carinho. Como se conhecesse a outra pessoa do outro lado da linha e ela me ouvisse e me sentisse e presenciasse o meu âmago.

Nem imagina o que essas palavras significam para mim.
E a conversa continuou até que os obrigadas terminaram e os com licenças e desligámos o telefone.

Senti-me cheia!

Uns meses mais tarde, na altura em que o Bernardo ainda praticava basquetebol, estava a conversar com a Margarida, quando ela me disse que a mãe de um menino do basquetebol, a Catarina, era dona do Púcaro e que tinha vendido recentemente a Adega do Confrade.

Adega do Confrade?

A Catarina (que mal conhecia; que passava por mim e dizíamos boa tarde boa tarde tudo bem? tudo bem?) era dona da Adega do Confrade?!!
Sim. Vendeu o restaurante recentemente.

Naquele momento, tive a certeza que a Catarina era a pessoa com quem tinha falado ao telefone e, se fosse, achei que tinha de falar com ela como se o mundo pudesse terminar ali.
Compreendem?

Cheguei perto dela, muito séria e genuinamente agitada, como se a verdade dependesse das minhas palavras, e disse-lhe, enquanto a olhava fixamente.

Olha, Catarina.. Acho que já nos conhecemos.
E peguei-lhe nas mãos.

Estava certamente a ser teatral e dramática e ridiculamente disparatada, mas, para mim, que a tinha ouvido e sentido naquele momento que pareceu durar para sempre, fazia sentido.

Lembras-te daquela noite em que recebeste um telefonema de uma cliente que tinha vindo da Adega do Confrade? E que telefonou para falar de uma funcionária...?
E apertei-lhe as mãos.
Ela fitava-me, muito séria.
Olhava para mim, como se olhasse para a minha alma.
Sim...
Disse ela.

Fui eu.

Houve um silêncio.
Um silêncio que se tornou longo e que parecia estalar entre nós, erguer-se ao ar e suster-se, de punho em riste.


De repente, a Catarina, com os olhos em água - pelo menos, juro que pareciam que estavam em água!! - disse.
Foste tu?

Temos de combinar um café.


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