18 de agosto de 2018

os meus 5 minutos # 23

conheci a Letinha numa sexta à noite
trabalhava lá na tasca da esquina
aquela esquina em que parecia que o sol se tinha esquecido dela e apenas o vaivém monótono de sobretudos pesados e lúgubres lembrava que o lugarejo existia
lá dentro, uma dormência latente respirava, suspensa
apenas o barulho estridente da loiça ameaçava acordar os movimentos pensativos de quem por ali se alongava
a Letinha era a única que lutava com o tabuleiro na mão, com o baloiçar dos copos, vivos, intrépidos, revoltos
ginasticava tão bem que a dança tinha asas e vibrava
ela era assim
eu comia e bebia, à farta, e a Letinha lá estava, enfiada no seu sorriso sofrido e no avental engelhado no abraço das ancas
fazia parte daquelas paredes que só existiam por sua causa
robustas e silenciosas, eretas, desciam até aos seus pés e aninhavam-se em si
falou comigo uma vez
primeiro olá
depois boa noite
tudo bem
senta-te que já levanto a mesa
e a mesa olhava para mim, carregada de nódoas de vinho e gordura e pedaços de arroz
e ela vinha e limpava tudo rapidamente
corria e o suor corria-lhe no rosto lívido e desmaiava no decote, num soluço, por entre uma corrente de ouro que adivinhava uma cruz na sua extremidade
e a toalha de papel era amarfanhada pelas suas mãos grossas e céleres que a anulavam logo ali
vinha uma outra, branca e lisa
e uma jarra de vinho
e um frango
e o arroz
e a salada que era, muitas vezes, esquecida
e lá vinha a Letinha, com os braços de sardas, trémulos e anafados
tagarelava para o ar e acrescentava vida àquele punhado de gente que empurrava a solidão para longe e ela tornava a vir uma e outra e outra vez
a miúde, imaginava um diálogo que nunca chegou a existir
como estás
estou bem. cansado
queres que me sente ao teu lado
sim
e ela descia até mim com os olhos postos nos meus e olhava-me, curiosa
entravamos no mundo um do outro
víamos o que ninguém conseguia ver
perguntava-me se gostava de ler e de ir ao cinema
e de pintar
gostas de pintar
sim, mas já me esqueci. esqueci-me de como se pinta, acreditas
voltava outra noite e, dessa vez, estendia-me umas quantas bisnagas de guaches e um pincel e um bloco de folhas grossas
agora pinta
e eu pintei

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