3 de outubro de 2017

leitura em dia # 19

Li esta crónica no âmbito do programa escolar de Português para o nono ano.
Nunca foi segredo que António Lobo Antunes é um dos meus escritores preferidos.
É direto.
Seco.
Por vezes decadente.
Criativo.
Imaginativo.
Genial.
Sonhador.
Admirável.

Deixo-vos aqui com Subsídios para a Biografia de António Lobo Antunes.


Julgo que herdei do meu avô o gosto de me sentar calado, a olhar. Ele fazia-o no jardim. Como não tenho jardim faço-o em casa, nos bancos da rua, nos parques, nos centros comerciais. Durante a Faculdade, mal acabava a aula na morgue, descia à avenida da Liberdade e, nádega para a direita, nádega para a esquerda, conquistava um espacinho de tábuas entre dois reformados. Os reformados falam pouco e eu também. Só me faltava a pantufa do pé direito, o cigarro de mortalha e a bengala. Normalmente era o último a ir-me embora. De bata nos joelhos via a cidade iluminar-se. Os pombos emigravam para o telhado do anúncio Sandeman, um homem de chapéu e capa, com um cálice de vinho do Porto. Na minha opinião, adquirida pelos cinco ou seis anos de idade, nunca existiu nada mais bonito. Gostava de Mandrake porque se parecia com ele: “Mandrake fez um gesto mágico e...”. Ao erguer o cálice o anúncio Sandeman fazia um gesto mágico e a noite aparecia. Este milagre quotidiano continua a encantar-me. Além disso havia as frontarias dos cinemas e as lâmpadas a correrem à volta dos nomes dos atores: Esther Williams, Joan Fontaine, Lana Turner. Concebi por Lana Turner uma paixão absoluta, exclusiva. Em momentos de desânimo quase penso que me não retribuiu. Mas o desânimo, claro, é passageiro, e o cabelo platinado, as sobrancelhas evasivas desenhadas a lápis, em semicírculos perfeitos, os vertiginosos decotes de cetim, o baton escarlate, tudo me garante um amor eterno, eternamente partilhado. A filha matou o gangster Johnny Stompanato, seu suposto amigo
(nunca o amante, o amante era eu)
e ainda hoje lhe estou grato por isso. Usou a faca da cozinha onde Lana Turner, aposto, fazia salsichas com couve lombarda, o meu almoço favorito, a pensar em mim. Também não me agradava que beijasse os outros nos filmes. Mas talvez fosse melhor dessa maneira porque, se chegasse a casa com baton e me desculpasse à minha mãe
- Foi a Lana Turner, anda perdida aqui pelo rapaz
receio que ela não levasse em gosto a hipótese,
qual hipótese, a certeza
de o filho de onze anos casar com uma divorciada, porque isso afastava a cerimónia da igreja e nós éramos católicos.
O argumento
- Uma divorciada, filho
abalava-me. Tentei discutir o assunto com Lana Turner, ela no écran e eu no segundo balcão
- A minha mãe vai pôr problemas por a senhora ser divorciada
um espetador, três filas adiante, mandou-me calar, mas percebi que enquanto Jeff Chandler a abraçava Lana Turner disse que não com  a cabeça antes de cerrar as pestanas compridíssimas
(não com deleite, por ofício apenas, quem era Jeff Chandler, de cabelos brancos, ao pé de mim, em calções?)
assegurar-me que ela mesma falaria lá em casa da inevitabilidade do nosso matrimónio enquanto Nat King Cole, cantando, em fundo,. Imitação da Vida, dissolvia as últimas resistências de uma educadora preocupada sem motivo. Aliás tentei uma conversa exploratória aproximei-me com desenvoltura do tricot, toquei-lhe no braço, a minha mãe deixou de contar as malhas
- O que foi?
anunciei num tonzinho casual
- Acho que Lana Turner e eu estamos noivos.
a minha mãe voltou a contar as malhas, setenta e seis, setenta e sete, setenta e oito
- Ai sim?
prova de que aceitava o facto sem discutir, virei para o meu quarto, anunciei à minha noiva, de casaco de peles num cartaz da parede
- Já está
e oficializei o compromisso com um anel de alumínio que me saiu na prenda do bolo-rei. Devo acrescentar que foi uma união feliz, sem manchas, até encontrar Anne Baxter, aos doze anos, n' Os Dez Mandamentos, mulher de Yul Brynner, o Faraó, e apaixonada por Moisés-Charlton Heston. Afastei Yul Brynner e Charlton Heston com um piparote e esqueci Lana Turner. Não terá sido bonito porém a alma humana é impiedosa. Temi a reação da minha mãe, que morava há séculos com o meu pai e presumi conservadora. Expliquei-lhe o assunto a medo, tocando no braço do tricot. Felizmente ela, criatura evoluída, limitou-se a perguntar
- Ai sim?
a acrescentar
- Se não paras com essa vida de playboy enganou-se no pulôver e a distrair-me de mim.
Virei para o quarto, participei a Anne Baxter, pregada com quatro tachas à parede, no ex-lugar de Lana Turner
-Já está
Yul Brynner e Charlton Heston, bons perdedores, aceitaram resignadamente o facto, reparei inclusive que Yul Brynner a beijava com menos intensidade no filme.
a vida é assim, não vale a pena contrair sentimentos 
com Charles  Heston  não me preocupei por aí além dado que falece diante da Terra Prometida e, Anne Baxter e eu só nos separámos em Eva, quando compreendi a horrível maldade do seu carácter, ao fazer sofrer Betty Davis que se parecia com a minha avó. Em desespero de causa tentei voltar para Lana Turner que desaparecera dos cinemas com o desgosto que lhe dei. Se a encontrarem digam que estou arrependidíssimo e que peço desculpa. Digam também que telefone para casa dos meus pais. Deve estar por lá um miúdo de anel de bolo-rei no dedo que recebe a chamada.

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