Aqui está o poema que vos prometi de Alexandre O'Neill, O poema pouco original do medo.
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
*
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos a ratos
Sim
a ratos
Alexandre O'Neill in Abandono Viciado
Apenas no TEDxOporto ouvi um excerto deste poema pela primeira vez.
E ainda bem, pois cheguei a casa e quis lê-lo todo, de fio a pavio.
Devorá-lo, até.
Até me tocar na alma, que mo tocou sobejamente.
Julgo que todos nos identificamos com ele, de uma forma ou de outra.
Mais dramática ou menos dramática.
No contexto do terrorismo que tem assolado o mundo nestes últimos tempos ou, de forma mais pacata, apenas nos nossos "eus", nas nossas vidas e nas nossas imediações, todos já sentimos este medo voraz que vem e nos abocanha e nos engole e nos toma como seus.
O medo é rei e senhor.
Tem tudo.
É omnipotente e omnipresente.
Está lá, em todo o sítio e a toda a hora, de atalaia, na porta dos nossos muros.
Tem sentidos no sentido da nossa existência.
Vive e respira.
É autosuficiente.
É autosuficiente e manifesta-se nas nossas fragilidades mais acutilantes.
Afinal de contas, até os heróis têm medo, caramba!
É um crescendo que vem e que rouba e que leva e que arrebata, rato esse, que rouba, ri, rouba, rói e leva tudo e não nos deixa nada.
Sim
nada
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