Por vezes, a arte
surpreende-nos, emociona-nos, enche-nos de perplexidade, lança-nos uma
rasteira, e, voilá!, uma simples sala
vazia é considerada uma obra de arte. Temos de interpretar o mundo à nossa
volta e reinventar o belo a cada momento. Saber fazê-lo distingue-nos dos
outros animais; cria-nos uma alma, sentimentos e divagações; achamo-nos e
encontramo-nos em nós.
Quando alguém se refere à
escrita de José Saramago, ouço muitas vezes dizer que ele não usa pontuação e
que não sabe escrever. Todavia, José Saramago vai mais longe; usa, de facto,
pontuação, mas preenche páginas inteiras apenas com vírgulas, sem um único ponto
final (então e António Lobo Antunes não faz o mesmo??). O escritor não utiliza, realmente, pontos de exclamação ou interrogação ou mesmo travessões; a
parte mais divertida, em que temos de fazer uso da nossa imaginação, é quando
nos detemos nas vírgulas, que acabam por ser meras pausas na leitura, cabendo-nos
a nós atribuir-lhes o valor que acharmos mais acertado e a personagem mais
eficaz e verosímil. Temos de nos concentrar e resolver o enigma da pontuação,
dar-lhe graça, entoação, credibilidade e um fio condutor, enfim, existência,
propriamente dita.
Se uma sala vazia pode ser
considerada uma obra de arte, por que não podemos encontrar arte em meras
vírgulas suspensas entre palavras cujo significado depende unicamente da nossa
interpretação? José Saramago dá-nos o poder supremo de refazer a sua escrita e
de encarnar nas próprias personagens; entrega-nos a tela, solenemente, em mãos
e nós temos o privilégio e o gozo tremendos de a pintar com os gatafunhos dos
nossos devaneios.
Obrigada, José Saramago.
Aos depreciativos críticos de Saramago eu apresento o novo acordo ortográfico,* com as devidas lamentações que me assistem...
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