Em Memorial do Convento assistimos a uma diáspora terrestre - a construção do convento de Mafra que nos atira, sobremaneira, para as ondas reminiscentes dos Descobrimentos. Um D. João V, megalómano, egocêntrico, tirano, será, certamente, o carrasco que três vezes chia, grosso e imundo; o nosso Adamastor ou o nosso Mostrengo que surge do mar de breu e nos faz tremer.
Contam-nos uma história que se mescla com a ficção e cujas linhas diegéticas se intercalam.
Era uma vez um rei que fez a promessa de levantar um convento em Mafra. Saramago mitiga a imponência desta figura histórica a uma dimensão caricatural, sendo D. João V, muito embora, o paradigma expectável que lança os dados. O seu capricho irá gerar os maiores sacrifícios para que o seu sonho se concretize.
Era uma vez a gente que construiu esse convento, os trabalhadores de Mafra, o herói coletivo que atravessou tormentas e que desafiou o desconhecido, o povo cantado por Camões e Cesário Verde.
Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. A linha diegética do amor dá voz, agora, a Baltasar e Blimunda, uma só personagem que vive um amor puro, verdadeiro, marginal, transgressor, pois não respeita códigos sociais e basta-se a si próprio. Este amor contrapõe-se ao dos reis, em que o verniz estala numa corrida abrupta, assente numa relação meramente artificial que obedece às regras da corte. Não são mais do que dois estranhos que se encontram duas vezes por semana para cumprirem o seu dever: dar um herdeiro à coroa.
Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido e que traça a linha da construção da passarola ou da ciência. Padre Bartolomeu, personagem também ela transgressora, como, aliás, tudo nesta obra, é perseguido pela Inquisição, devido à modernidade do seu espírito científico e à subversão do seu comportamento anticanónico. É uma cárie dentro da igreja, questionando os dogmas eclesiásticos. Formou uma "santíssima trindade" para poder concretizar o seu sonho de voar e arrasta-nos com ele, convidando-nos a acreditar.
Seria nesta esfera que deveria entrar Domenico Scarlatti, uma personagem tímida e envergonhada que permanece discreta, quase só respira, quase só murmura. Seria, eventualmente, uma nova linha de diegese que ninguém deu conta e que pareceu escapar aos mais atentos, a linha das Reflexões do Poeta ou a linha do Encoberto. Figura incómoda para o poder, pela liberdade de espírito e pelo poder libertador e subversivo da sua música, este cúmplice silencioso será um Bandara que anuncia um Quinto Império. A música de Scarlatti inspira os construtores da passarola e cura Blimunda da sua estranha doença causada pela exaustão na recolha das duas mil vontades. O cravo do italiano e a sua música simbolizam o ultrapassar por parte do ser humano de uma materialidade excessiva e o atingir da plenitude da vida. A ciência e a arte são reveladoras de um espírito de inovação, de tolerância e de abertura ao progresso e à modernidade, tão certo quanto D. Sebastião regressar numa manhã de nevoeiro montado num cavalo branco, entre sombras e dizeres.
Valete Fratres.