“Vicente” é um conto que faz parte da obra Os bichos, de Miguel Torga. Altamente simbólico, sugestivo, provocador e interventivo, “Vicente” lança uma mensagem de conforto e de esperança numa altura em que o Estado Novo chicoteava Portugal e em que o povo necessitava, como de pão para a boca, de poder acreditar na sua liberdade e num futuro, quiçá, risonho.
Assim, neste conto, o Senhor reconheceu que a maldade do ser
humano na Terra era incomensurável, que, inevitavelmente, todos os seus
pensamentos e desejos pendiam única e inexoravelmente para o mal. Amargamente
arrependido de ter criado esta espécie sobre a face da Terra, o Criador sofria. Nisto, Deus
omnipotente e Deus omnipresente, eis que decide eliminar o produto, corrompido,
fruto da sua criação e dos seus devaneios. Então, o Senhor disse: «Eliminarei
da face da Terra o homem que Eu criei, e, juntamente com o homem, os animais
domésticos, os répteis e as aves dos céus, pois estou arrependido de os ter
feito».
Noé, no entanto, era um homem justo e perfeito, entre os
homens do seu tempo, e escapava ileso a todo esse ato acusatório, a toda uma
censura encerrada e lacrada a lápis azul.
Então, Deus disse a Noé: «Constrói uma arca de madeiras
resinosas. Dividi-la-ás em compartimentos e calafetá-la-ás com betume, por fora
e por dentro. Hás de fazê-la desta maneira: o comprimento será de trezentos
côvados, a largura de cinquenta côvados e a altura de trinta côvados. Ao alto,
farás nela uma janela, à qual darás dimensão de um côvado. Colocarás a porta da
arca a um lado, construirás nela um andar inferior, um segundo e um terceiro
andar, pois vou lançar um dilúvio, que inundando tudo, eliminará debaixo do céu
todo o ser animal, com sopro de vida».
Ordenou implacavelmente!
E Noé assim o fez, cabisbaixo, fraco, humano, submisso, sem
questionar, rompendo-se, logo ali, todas as fontes do grande abismo, e abrindo-se
as cataratas do céu. Naquele mesmo dia, Noé entrou na arca com Sem, Cam e
Jafet, seus filhos, sua mulher e as três mulheres dos seus filhos; juntamente
com eles, entraram ainda os animais selvagens segundo as suas espécies, os
animais domésticos segundo as suas espécies, os répteis que se arrastam pela Terra,
segundo as suas espécies e todos os animais voláteis, todas as aves, tudo
quanto possui asas, segundo as suas espécies. A chuva caiu, torrencial, injusta
e agressiva, sobre a Terra, durante quarenta dias e quarenta noites. As águas
cresceram, sedentas, e levantaram a arca, que foi elevada por sobre a Terra. Iam
engrossando, turbulentas, subindo muito acima da Terra. A arca flutuava à
superfície e ZÁS! todas as criaturas que se moviam na Terra pereceram.
Assim.
Assim o conto.
Assim o ponto de partida: o castigo de Deus devido à maldade
do ser humano.
Assim: Deus ter decidido castigar as suas criaturas devido à
corrupção reinante, fazendo com que um dilúvio caísse sobre a Terra.
Deus é grande e é pai e é magnânimo - como António de
Oliveira, aliás - por isso, iria preservar Noé e seus filhos e cada par de animais
existentes, fazendo-os embarcar na Arca.
Decorridos quarenta dias, não obstante, Vicente decidiu fugir.
As pessoas e os animais presentes na Arca assistiram à
partida de Vicente com «respeito calado e contido», ll. 20-21. Quando Deus
perguntou pela primeira vez a Noé onde estava Vicente, todos «ficaram
petrificados» pelo medo, l. 29.
Os sentimentos de «angústia», l. 68, e de humilhação –
«fauna desiludida e humilhada» - persistiam naquela arca malfadada, pois não
era certo, não senhor, lobos coabitarem com cordeiros, traindo a sua natureza e, pior!, o seu
instinto.
Vicente - nome de homem - que simboliza aquele que decide
libertar-se das amarras do fascismo e do Estado Novo, acaba por ser a chama que
a todos alumia; seria ele o responsável pelo alento dos seus corações e pela
liberdade que poderia dali advir.
Então, Deus e Vicente lutaram e esbracejaram frente a frente.
Travavam, agora, uma luta desigual; Vicente, onde já se viu?,
um pequeno e frágil corvito de nada, a desafiar um Deus Todo Poderoso? O ser
humano contra o Estado Novo! A escravidão contra a liberdade!
Onde já se viu?
O «pequeno penhasco», que, embora não passando disso, era,
então, uma promessa de Terra, do fim do sacrifício de 40 dias na Arca.
Os seus passageiros, admirados e felizes por constatarem o
ato de rebelião de Vicente – afinal um deles! – acreditavam, ainda que a medo,
acreditavam que as amarras seriam quebradas e que o corvo os vingaria da
provação sofrida.
Deus - vingativo, arrogante, temerário - para obrigar
Vicente a regressar à Arca, fez com que as águas subissem de modo a quase
taparem o pequeno penhasco sobre o qual o corvo estava pousado; mas Vicente,
apesar de fustigado pelas águas mandadas pelo Senhor misericordioso, resistiu de tal modo, com
tal coragem, com tal vontade de ser livre, que Deus cedeu e as águas desceram,
obedientes.
Vicente venceu.