O espelho de Ojesed ou quando as crianças brincam
Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.
Fernando Pessoa ortónimo e Harry Potter in
Harry Potter e a Pedra Filosofal
lembram-se quando Harry enverga a mítica capa com o poder da invisibilidade (ah! que bom poder não ser!) e entra na obscura sala do espelho de Ojesed?
lembram-se?
aproxima-se, a medo, passo a passo, pé ante pé, do magnífico espelho, de grandes proporções, com a sua majestosa moldura de talha dourada, com as seguintes letras entalhadas
erised strae hruo ytub ecaf ruoyt on woh sie, que, lidas ao contrário significam
I show not your face but your heart's desire.
nesse instante, o pequeno feiticeiro surge, de forma impossível, refletido no espelho, ao lado dos seus pais, numa realidade hitchcockiana.
uma realidade que não é e nunca foi sua, pois nunca os conheceu, de facto.
sorriem para si, eles.
a mãe toca-lhe, afetuosamente, com a mão no seu ombro e parece que Harry consegue senti-la.
sim.
consegue senti-la.
por fim, Albus Percival Dumbledore, o diretor de Hogwarts, com a sua longa e alva barba a lembrar o outro, o tal de Gandalf, desvenda o mistério do espelho.
afinal de contas, o espelho não dá conhecimento nem tampouco verdades.
desenganem-se, vá.
representa, sim, os desejos dos nossos corações; um autêntico desperdício de tempo que pode levar-nos, irremediavelmente, à loucura, já que é tão fácil perdemo-nos em sonhos, não é?
mas é através deles, enquanto forma de evasão à realidade que oprime, que os dois, Pessoa e Potter, se afastam da lucidez analítica e metafísica, levando-os, ainda que por efémeros momentos, a conceber uma vida de inconsciência; um refúgio à sua permanente inquietação existencial.
criam, então, eles!, a breve ilusão de que a felicidade é possível
"naquela terra de suavidade/ Que na ilha extrema do sul se olvida", com
"palmares inexistentes, / Áleas longínquas sem poder ser", naquele
reflexo reconfortante do que poderia ter sido e não o foi.
claro que nós, eu e tu, sabemos perfeitamente que o que está "além" do "muro" ou "da curva da estrada" é apenas a solução mascarada para uma existência desditosa.
sabemos também que não podemos viver a sonhar e esquecermo-nos de viver.
não podemos.
, pois "não é (de todo) com ilhas do fim do mundo/ que cura a alma seu mal profundo".