É preciso que uns mandem e outros obedeçam. Os que mandam dividem -se em vários graus [...]. Uns dedicam-se particularmente ao serviço de Deus; outros a defender o Estado pelas armas; os outros a alimentá-lo e a mantê-lo através de atividades pacíficas. São estas as três ordens ou estados.
Charles Loyseau, Traité des Ordres et Simples Dignitez, 1613
[...] Essa esperança [de ascensão social] faz com que essa pessoa se contente com o seu estado e não tenha ocasião de maquinar contra os outros, sabendo que por meios bons e lícitos aí pode chegar e que correria perigo se lá quisesse chegar por outra via[...]
Claude de Seyssel, prelado e político francês, La Monarchie en France, 1515
A sociedade de ordens remonta ao Antigo Regime e é imprescindível decifrá-la, com o intuito de nos comprometermos a perceber o presente, bem como os inerentes vínculos estabelecidos no seio da sociedade atual. Na realidade, a estratificação per se perpetua-se até aos dias de hoje, de uma forma subtil e mascarada, e dela advém todo um regime de comportamentos, regras, aparências e negociações entre os cidadãos que ganha contornos relevantes desde muito cedo, nomeadamente, a partir da adolescência. Nesta fase mais complexa, propícia a alterações dramáticas, mudam-se as crenças, mudam-se os hábitos, mudam-se os corpos e mudam-se os grupos. É precisamente no âmago do grupo que os adolescentes encontram a sua independência e autonomia, imprescindíveis na edificação de cidadãos plenos e conscientes. Os adolescentes procuram, indubitavelmente, novas experiências na aproximação e interação com os pares, com o intuito de construírem a sua própria identidade. O grupo assemelha-se, assim, a uma montra de comportamentos e hierarquias com regras bem rígidas e bem delineadas, em que cada elemento desempenha um papel distinto, em concordância com o que é expectável.
Entre os séculos XVI e XVIII, os comportamentos pertencentes a cada classe social encontravam-se escrupulosamente estipulados, no tocante às leis institucionalizadas e, nomeadamente, à mentalidade dominante. O estatuto jurídico, bem como os gastos, as profissões, a indumentária, a alimentação, as amizades, os divertimentos e as formas de tratamento deviam espelhar fielmente a pertença a cada uma das ordens vigentes.
Nesta ótica, os códigos sociais eram impreterivelmente intrínsecos ao papel que cada um desempenhava no seu quotidiano. Por exemplo, apenas os nobres se faziam acompanhar da espada e apenas os membros do clero usavam a tontura. As formas de tratamento divergiam significativamente, acatando uma hierarquia subjacente. Os eclesiásticos exigiam ser tratados por "Sua Eminência" ou "Sua Excelência"; os cardeais, "Ilustríssimo", os bispos, "Reverendíssimo", seguido da vénia e do beija-mão; a alta nobreza, "Excelência"; viscondes e barões, "Senhoria"; a baixa nobreza, "Vossa Mercê" ou, simplesmente, Dom; o burguês, "honrado homem"; no que concerne à arraia miúda, o tratamento por "tu" ou "vós" era suficiente. Todavia, este código seletivo estava longe de terminar aqui. A preocupação constante em sublinhar a diferenciação social em todos os parâmetros da vida diária deixou antever os principais valores preconizados na sociedade de ordens, a superficialidade e a degradação dos valores. No topo da cadeia alimentar, o rei absoluto surgia enquanto produto de modelos estéticos de encenação do poder de contornos definidos, regulador absoluto da hierarquia social.
As acões do monarca eram teatralizadas, encenadas, de forma a endeusá-lo e a sobrevalorizar a distinção das ordens sociais. No absolutismo régio, cada atitude possuía um significado social ou político inegável. O rei controlava o seu povo através de um conjunto de regras de sociabilidade e bastava um gesto, um sorriso ou um olhar reprovador para ditar sentenças, funcionando como recompensa ou punição de um determinado indivíduo. Assim, a corte era submetida a uma hierarquia rigorosa e ninguém se atrevia a desafiar as suas decisões. A estratégia régia cingia-se à aproximação da nobreza, envolvendo-a no seu cerimonial de corte, para que todos testemunhassem o seu poder. Por sua vez, o papel das vestimentas revestia-se de utilidade política e a nobreza devia seguir o rei nas suas vestes de custo elevado. Isso geraria custos elevados que a nobreza não tinha como suportar, dependendo do monarca e da sua boa vontade.
O cerimonial de corte estabelecido pelo rei teve um papel decisivo na elevação e manutenção do seu poder sobre o reino. Através desse cerimonial, o rei incentivava os desequilíbrios sociais, promovendo alguns indivíduos para que achassem que eram agraciados por si, despertando o ciúme na nobreza e o desequilíbrio momentâneo.
À imagem de Luís XVI, o estado era o próprio rei, conseguindo com as suas leis e o seu plano político de centralidade do poder em si mesmo, através do cerimonial de corte e outras atitudes, estabelecer a existência do seu poder e da sua autoridade suprema.
Em França, a corte régia funcionava no Palácio de Versalhes. Mas Versalhes era também o centro da vida galante, funcionando como um espelho e uma encenação do poder. Através do luxo e espetáculo da corte, os reis tentavam transmitir uma imagem de omnipotência e esplendor. Aqui, todas as festas e cerimónias eram sumptuosas e carregadas de aparato. A opulência dos banquetes, a riqueza do vestuário e a complexidade do cerimonial, tudo contribuía para um mesmo objetivo - o endeusamento da figura do rei.
Cada ato do dia a dia do monarca, desde levantar, almoçar ou passear, eram regulados por uma minuciosa etiqueta. Ser convidado para assistir e participar dessa rotina era uma esperança de todos e um privilégio somente de alguns. O gosto do rei pelo exibicionismo também ajudou. Dizia Luís XVI: " Nós não somos particulares, pertencemos ao público."
Na corte residiam os mais importantes nobres que rivalizam entre si a obtenção das boas graças do rei, fosse um cargo, uma tensa ou uma pensão. Empobrecidos nos seus rendimentos fundiários, só lhes restava procurar junto do monarca formas de aumentar a fortuna. Todavia, as despesas e o luxo que a vida na corte lhes exigia, arruinava-os ainda mais. Para suportar um nível de vida tão dispendioso que valorizava os trajes riquíssimos ou as aprimoradas cabeleiras, tornavam-se dependentes do rei e das suas benesses que, por sua vez, incentivava esta situação, chamando-os à corte, concedendo-lhes cargos honoríficos, entretendo-os com bailes, peças de teatro, ou caçadas e gerindo habilmente as intrigas e rivalidades que surgiam entre eles, num esforço desesperado para a obtenção de um sorriso ou de um convite. Quem não frequentasse a corte, aliás, virava as costas ao poder e ao dinheiro que o rei distribuía magnanimamente. Este jogo permitia ao rei um apertado controlo sobre a nobreza, conseguindo assim a sua submissão.
A estrutura da corte, de uma forma geral, remete para a atual forma como a organização hierárquica é efetuada na sociedade atual. As regras da corte funcionam de forma semelhante num grupo social, em que a hierarquia subsiste terminantemente. O grupo, na adolescência, é, muitas vezes, uma forma de afirmação e de conquista, em que os atos e os elos entre cada elemento ganham contornos significativos. Também o grupo tem um líder que atua concordantemente, estabelecendo as regras que o regem numa simbiose de aparências e o palco situa-se, muitas vezes, na própria escola. Essas regras devem ser escrupulosamente cumpridas: possuir sapatilhas ou roupa de marca, praticar um desporto, ter uma determinada orientação sexual, fumar, ter boas notas, entre outros.
A não pertença a um grupo pode causar danos irreversíveis ao nível psicossocial, tais como perturbações depressivas, comportamentos suicidas e de automutilação, perturbações do comportamento alimentar, hábitos de consumo, violência, bullying ou comportamentos de risco, uma vez que o adolescente vê o seu status abalado. Tornam-se cada vez mais recorrentes situações de dependência relativamente a redes sociais e jogos de vídeo, já que a existência e a ostentação necessitam claramente de um público que as valide. São criadas, assim, ilusões de vidas perfeitas que, muitas vezes se distanciam da realidade oca e vazia que parece não ter fim. As alterações mais dramáticas e profundas que ocorrem nos adolescentes pertencem ao foro psicossocial e têm que ver com a identidade, a autonomia e o pensamento abstrato. Surgem os primeiros riscos, as angústias e as inseguranças; começam a caminhar com os seus próprios meios por trajetos cheios de projeções recebidas e limites impostos pela sociedade.
Nesta fase, a referência deixa de ser apenas a família; o leque de contactos sociais alarga-se, bem como as influências que parecem sujeitar cada adolescente ao grupo que querem pertencer. A busca de autonomia prepara, inequivocamente, a transição para a idade adulta, mas esta mudança nem sempre é pacífica. Para tal, estão dispostos a muito. Na busca da identidade e independência, o adolescente tenta traçar o seu caminho a todo o custo e este processo implica, muitas vezes, comportamentos exploratórios e de experimentação.
Entrar na adolescência, significa, frequentemente, sair do âmago familiar e deixar de tê-lo como modelo absoluto; o adolescente convive com os pares, espelhando-se neles. É importante que esse afastamento ocorra. Debalde, a rede de amplificação daquilo que é privado e individual acaba por gerar vulnerabilidade e suscetibilidade às influências do próprio grupo de amizades, dos meios externos e de um mundo virtual que devora o bom senso e premeia sentimentos e afetos descartáveis. A presença nesse cosmos virtual é essencial, pois é sinónimo de poder e popularidade. Não se trata de demonizar os meios sociais, pois estes são igualmente um meio poderosíssimo para o exercício da cidadania e da democracia. Trata-se de promover uma vigília parental algo discutível num mundo em que o excesso de informação não se coaduna com a maturidade intelectual do adolescente sábio e desajustado numa realidade que o manipula como num teatro de marionetas.