a menina que salvava caracóis.
era uma menina.
que salvava caracóis.
conforme podia.
não tinha nome.
tinha um rosto bonito.
com uns grandes olhos.
castanhos.
que azuis metem medo e só ela sabe porquê.
e verdes também.
verdes não, por favor.
também não.
e pretos podem afugentar os mais fracos, os franzinos, e os coitaditos, os que têm medo do escuro e passam as noites longas como demónios debaixo dos lençóis e dos cobertores e têm de dormir de orelhas cobertas e com os pés bem tapados.
os seus grandes olhos castanhos viam o mundo de uma forma diferente.
viam as senhoras anafadas no limiar das portas dos prédios como rolas pousadas, de cabeça enterrada.
senhoras sobejas que se queriam levantar, sozinhas, pelo seu pé, e não conseguiam.
senhoras que, com o peso, era difícil pôr uma perna à frente da outra e erguer os quadris.
era preciso ajuda.
e apenas a menina que salvava caracóis passava por ali.
mais ninguém.
só ela.
mas a menina nunca tinha salvo senhoras.
senhoras pesadas e pobres e com cheiro a quem não toma banho.
atenção que não era por mal.
não era por mal, não senhor.
só que ela não sabia como fazê-lo.
não sabia que podia aproximar-se e perguntar se precisavam de ajuda.
seguiu o caminho de olhos em frente e coração enjaulado.
podes ajudar-me?
aquela voz era tudo.
era um pedido de socorro para ela, a senhora, e para a menina.
sim.
claro que sim! por favor, sim!
e mergulhou a mão junto ao pequeno degrau da porta.
e agarrou a sua, grossa, áspera, de ferro, e puxou-a para si.
e o seu coração ganhou asas.
voou.
é engraçado.
quem vê, assim, de fora, aquilo que se está a passar não diz que a menina que salvava caracóis era a que estava a ser salva agora.