30 de janeiro de 2020

a cigana # 3

Logo à nascença, fui comprometida com um rapaz da mesma etnia. Não o conheci desde sempre. Apenas viria a conhecê-lo muitas Primaveras depois.

Devo admitir que é revoltante estar noiva por imposição, não por prazer. Antes, um casamento firmemente vigiado pela tradição, em que o amor surge com os anos, provavelmente com a acomodação do casal e a resignação de ambos. Tinha, forçosamente, de obedecer a leis impostas; leis com o intuito de não serem jamais quebradas; daí a designação de “leis”.

Chamo-me Odete Oliveira. Odete, nome da minha mãe, nome igualmente da minha avó, a pessoa mais rica e profunda e encantadora que algum dia viria a conhecer. Cresci em barracas de chita, casas andantes que lembram as que os vagarosos caracóis carregam às costas a todo o custo e levam para onde quer que vão. Nunca tive uma terra; apenas poisos sem significado. Amigos, tão pouco! Brinquei e falei por momentos com algumas crianças, mas logo as mães apareciam afogueadas de susto e as tiravam de mim, pelo pecado único de poucas palavras. Aprendi, então, que falar devia de ser pecado, que o teu Deus castigava e nos tirava as crianças amigas. Deixei de falar. Anos assim! Nenhuma palavra proferida, mas, inexplicavelmente, acontecia tudo de novo: uma outra mãe afogueada que me tirava um amigo sem qualquer explicação. Cresci sem ninguém e sem compreender o mundo que me circundava. Não sabia por que o meu quarto era de pano e o teu de tijolos e cimento e tinta da cor das nuvens. Julgo que me isolava, pois tinha medo de possuir algo e que me fosse retirado de seguida; mais um castigo a juntar-se aos outros!

Mas esse não era o único medo que tinha. Havia muitos mais... o medo de andar sozinha nas ruas; medo que me gozassem e me desprezassem e me apedrejassem, como já tinha acontecido lá na escola. Medo de uma realidade cingida de mesquinhez e espelhos que reflectiam apenas o que se queria ver. Deixavam-se de lado as semelhanças que nos uniam, embora se tratasse apenas de contornar e adiar um problema, não de resolvê-lo; virar-lhe as costas e deixá-lo desenvolver-se em barracas, em bairros de lata invisíveis de dor e sofrimento! Já reparaste que, por vezes, torna-se muito mais simples não ver? Já reparaste?!

Tive, contudo, uma única amiga a quem me afeiçoei de verdade. Falava comigo abertamente, sem rodeios, e dava-me atenção. Acho que nos entendíamos bem. Confiávamos segredos. Riamo-nos. Uma vez, confessei-lhe que era pobre. Ela afagou-me com carinho e disse: “Eu também”. Senti-me, então, verdadeiramente unida a si, duas almas numa só, por termos algo em comum.

Porém, um dia, quando brincávamos no recreio, esquecidas da hora e da responsabilidade de regressar à sala de aula, fez-me chorar.

           - Ela é rica. – apontei para uma casa que espreitava a escola com impetuosidade - Tu não és, pois não?

Mas não me respondeu; os seus olhos buscando os meus.

- Ela é rica. – insisti – Tem cortinas! – fiz uma pausa e voltei-me para ela com o receio de que me desiludisse – Tu tens cortinas?

- Sim, tenho cortinas – respondeu-me, surpresa.

- Então, não és pobre! Mentiste-me!- e lembro-me que corri para longe, para que as lágrimas me caíssem com facilidade e a dor pudesse percorrer-me sem mentiras ao redor. Contudo, ainda hoje, guardo a sua serena presença no meu coração, tendo a consciência de que aquela sorridente menina loira de tranças e sardas e saia rodada foi e será sempre a melhor amiga que algum dia terei.

Nunca me importei de não pertencer a um lugar, ou a uma aldeia, ou a uma vila, ou a uma cidade, como tu certamente pertences. Escolhi, então, por minha própria iniciativa, uma terra e dei-ma; por ser bonita, por ter presenciado nela o pôr-do-sol mais limpo que algum dia pude imaginar, por nela te ter conhecido. Baptizei-me em Aveiro, sozinha, há muitos anos atrás, quando ainda os prédios grandes não existiam, somente os outros mais rasteiros, onde, todos os dias, uma menina me avistava da varanda, de vago sorriso nos lábios distantes. Sou, deste modo, aveirense. E, quando, a partir daí, me perguntaram na escola de onde vinha, já pude responder, e ninguém mais se riu de mim.

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