6 de fevereiro de 2020

a cigana # 4

Eu e a minha família nunca estamos muito tempo no mesmo sítio. Refiro-me a “sítio” como à minha casa, ou ao meu lar; simplesmente não me é permitido dizer casa, pois não tenho cortinas, muito menos paredes! Como estava a dizer, nunca ficamos muito tempo em cada sítio. Às vezes, dado que o frio se torna demasiado ou a chuva abundante; outras, porquanto o negócio vai mal e seguimos para terras de feiras maiores, onde os compradores abundam e o dinheiro vem melhor ao fim do mês. Outras vezes ainda, porque, de quando em quando, estalam grandes discussões entre nós, que terminam em tiroteios e até em mortes! Alguém que matou o cunhado com três tiros de caçadeira quando o apanhou na cama com a mulher, ou porque lhe abusou da filha mais nova. É complicado viver assim... É certo que não temos regras, nem leis conforme vocês e, no entanto, as vossas leis invadem-nos e tomam elas conta de nós! Não é justo, pois o povo cigano é a própria erva que se molda ao vento e ondula com ele. Nós não temos forma nem pertencemos a lado algum, apenas agimos com e para a Natureza...

Tinha quinze anos quando me obrigaram a casar. Quis fugir e ser como tu, livre e ágil como um pássaro, não como a relva que já tem um destino previamente traçado! Chorei dias e dias seguidos. Sempre tinha imaginado que a vida era um sonho e nada o podia quebrar! Acho que estava enganada... Desejava com todo o ardor sair daquele mundo, romper a teia que me acorrentava com malícia e seguir o rumo da minha alma. Estava confusa e perdida, mas tinha plena consciência que, se transpusesse a fronteira que nos separava, também tu não me aceitarias!

Conheci justamente nessa límpida noite de lua cheia aquele que viria a ser inevitavelmente o meu futuro marido. Era um homem bem mais velho do que eu, alto, seco, quase franzino, de negra barba e olhar indiferente. Exibia um largo anel no dedo indicador e um dente reluzente; ambos de oiro.

À hora do jantar, os homens e as mulheres partilharam excepcionalmente uma só mesa, em sinal de comemoração. Fizeram uma festa de cor, danças e cantares da minha longa tristeza. Quanto ao meu noivo, não me dedicou o olhar uma única vez durante longas horas. Brindava-me, sim, com a sua indiferença, cedendo cobardemente a um compromisso traçado pelo destino antes de os nossos corpos se terem definido, antes ainda de o nosso coração chegar a bater! A cerimónia ficou marcada para dali a um mês, data em que abandonaria o meu povo e seguiria com o dele. Um mês!

Incrédula, precipitei o olhar espelhado no aglomerado de prédios despidos, na tentativa vã de arranjar coragem para procurá-los e desistir de tudo. Passaram-se dias, semanas, um mês... Todas as manhãs, todas as tardes, todas as noites, tinha a irrevogável obrigação de atendê-lo tal qual uma súbdita, uma escrava, um objecto contemplativo. Cozinhava para si, lavava-lhe as roupas, cosia-as e remendava-as paciente e submissamente, acendia a fogueira e dançava para seu contentamento. Mostrava-lhe, evidentemente, os meus dotes, que era prendada, que iria dar uma boa mulher e uma boa parideira.

Faltava um dia para o casamento. Somente um dia! E foi então que o desespero me precipitou para o mundo de cimento; o mundo que sempre me desprezou e que agora o procurava e via nele a solução única para os meus males. Resoluta, acordei cedo e desapareci sem dar satisfação a ninguém. Fui como pude; descalça, de farrapos velhos e sujos numa saia comprida e rodada; uma trança negra quase até à cintura; umas argolas de oiro torcido. Aventurei-me.

Sem comentários:

Enviar um comentário