28 de janeiro de 2020

os meus cinco minutos # 38

Cesário Verde e Bernardo Soares comungam, indiscutivelmente, de uma ideologia intrínseca que os une de forma inevitável. A sua deambulação será o passo determinante para um universo interior complexo de quem observa acidentalmente a realidade e a transfigura a partir da deambulação quotidiana e sinestética pela cidade de Lisboa.
Em Cesário encontramos os sons da cidade e os cheiros da vida quotidiana de uma Lisboa pulsante. Ao deambular pela “Babel corruptora”, hostil e corrupta, impregnada de sórdidos valores morais, o sujeito poético capta as impressões e apreende o real que servirá de ponto de partida para a sua produção poética: “A mim o que me rodeia é o que me preocupa”.
De forma prosaica, através de um visualismo cinético e impressionista, o poeta-repórter capta a realidade concreta, estabelecendo pontes figurativas entre essa mesma realidade e a imaginação. O interesse por cenas do quotidiano cruza-se, assim, com a temática social num olhar de “luneta de uma lente só”, percecionando a materialidade minuciosamente através dos sentidos e dando conta das assimetrias sociais. 

A sua atitude decadente manifesta-se na errância por espaços físicos vários. O real exterior é absorvido pelo mundo interior do observador que o interpreta e recria com grande nitidez, numa atitude de captação do real pelos sentidos. Esses passos errantes pelas ruas e ruelas da capital fornecem-lhe o material poético de que necessita para eternizar em sonho o que o seu olhar objetivo apreende.

O semi-heterónimo pessoano encontra em Cesário ecos da sua ideologia, bem como do seu “eu” criador, recriando uma “aparente caoticidade textual empírica”. Também ele um observador acidental, recusa o sentido da vida e perde-se no sonho: “Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida”. Observamos, então, a primazia da imaginação criadora em relação às impressões exteriores, numa abstração permanente da perceção que permite a viagem na imaginação, assente na “mania de criar um mundo falso”.

Tal como em Cesário, a cidade de Lisboa torna-se um espaço de construção intelectual e sensorial deste “viajante” que tudo regista. Soares observa a massa anónima e quotidiana de forma distanciada e sente o repúdio da inconsciência, o repúdio da “normalidade da vida inconsciente”, uma vez que ser consciente é isolar-se, é ser estrangeiro, é sentir desassossego. O contágio metonímico da capital reflete-se, portanto, no espaço vazio do “eu” e o seu olhar analítico é, no fundo, uma extensão dele próprio.

O ajudante de guarda-livros acredita na inutilidade da viagem física em detrimento de um legado onírico, recusando o meio social e criando um “mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas”, através do princípio da autossuficiência. Desta forma, transforma o sonho no motor da comunhão com o “outro”, defendendo “uma vida real morta que fito, solene, no meu caixão”. À semelhança do ortónimo, também Soares parece anular a vida em favor do sonho desta. Observa, assim, a paisagem interior e acredita no sentido de inutilidade de tudo, uma vez que o mal da vida assenta na “doença de estar consciente”, manifestando indiferença pelo mundo, bem como um evidente tédio de existir “nessas horas lentas e vazias”.

A representação do real, o banal quotidiano e a deambulação são alguns dos denomiadores comuns entre Cesário e o semi-heterónimo pessoano. É através da deambulação pela cidade de Lisboa que o leitor testemunha a criação de um mundo interior capaz de espelhar sentimentos e emoções análogos.

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