25 de abril de 2019

os meus cinco minutos # 33

Os Descobrimentos foram o apanágio breve e fugaz da economia portuguesa, bem como do nosso próprio ego; o único momento áureo que dourou a pílula nacional.

Em O ano da morte de Ricardo Reis, o elo de união entre a época da diáspora portuguesa e o presente, decrépito, estagnado, moribundo, caótico, é, indubitavelmente, a dantesta estátua do Adamastor, no miradouro de Santa Catarina, na metrópole que, pelo silêncio, portuguesa deve ser. O seu tamanho desmedido simboliza os árduos obstáculos que os nautas tiveram de ultrapassar para conquistarem os revoltos mares deconhecidos e os perigos que por lá havia.
O Mostrengo ergue-se, ereto, ao longo da obra, enquanto lembrança constante e intimidatória da nossa frustração relativamente ao momento atual. À semelhança da série Strangers Things, dos Duffin Brothers, também um mundo invertido nos é impingido, não por José Saramago, mas pelos portugueses estáticos, sonhadores, sebastianistas, amordaçados por um fascismo salazarista que nos saiu da pele. 

O heterónimo Ricardo Reis, personagem pessoana que deixa Highland Brigade e o oceano estéril para trás, enceta agora a sua empresa terrestre, sinónimo da possibilidade de uma nova saga “Aqui, onde o mar acaba e a terra principia”.  O fim da glória portuguesa nos mares é certo, como certa é a nossa crença na possibilidade de encontrarmos a grandeza em terra. 

O protagonista carrega com ele o elemento cénico que o condena desde o início, The God of the labyrinth, que o acompanha pelo labirinto da cidade de Lisboa e do mundo, pelo labirinto das notícias tendenciosas, fraudulentas e eufemísticas dos jornais, pelo labirinto interior dele mesmo, que se tenta encontrar e justificar enquanto personagem palpável e material, independente de Pessoa, e pela circularidade da obra que nos oprime e não nos deixa escapar de uma realidade amorfa “Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera”. 

Às páginas tantas, nós, enquanto leitores, testemunhas ávidas da derrota da nossa História, criamos expectativas forjadas. Fazemos figas e, juro!, é possível vencer o fascismo e Salazar e a crise económica, e Reis vai, juro que vai!, comprometer-se com a vida, com a Lídia, vai perfilhar o raio do filho e vai errar mil vezes ao distanciar-se da disciplina estoica que o come vivo. Enquanto fazemos figas e fechamos os olhos, Reis vai ser pessoa. Não Pessoa, mas pessoa, agora, saramaguiano, mesmo que a porcaria da estátua nos olhe de soslaio e nos lembre deste universo invertido que não nos tem levado a lado nenhum, senão aqui mesmo, a este marasmo físico, político e intelectual.

No meio de Sampaios e Marcendas e personagens que não interessam nada a ninguém, damos de caras com Lídia, homónima da musa das odes do poeta da Antiguidade Clássica, agora, heroína saramaguiana. Personagem carismática, a lembrar a mulher do povo, forte, destemida e trabalhadora - o tipo de mulher valorizado por Cesário na sua poesia -, provoca o desejo e o afeto de Reis, embora pertençam ambos a classe sociais distintas e incomungáveis. É ela, ainda, quem mais?, que permite o despertar do heterónimo, bem como uma ligação com o Mundo, representando a possibilidade de aquele existir sem o seu criador.

Lídia afasta-se, drasticamente, com sua licença, da panhonhas da Marcenda, um bibelôzito adormecido, com a mão esquerda igualmente adormecida, em analogia com o outro tal de Baltasar e com os ideais comunistas que, por si só, poderiam salvar a pátria. A murcha Marcenda simboliza a apatia e a impossibilidade de ação. Espectadores do mundo, Reis e Marcenda, bebem da passividade e alheamento perante a realidade.  

À imagem de Cesário Verde, também Reis deambula geograficamente pela cidade oprimida, mas, sobretudo, deambula no seu cerne, tentando encontrar-se. Recupera o mapear da capital, é verdade, e desencadeia processos catárticos de divagação. Olha para dentro de si próprio e tenta descobrir a sua identidade. 

Já a Lisboa personificada, velha, chorosa e grisalha, sufoca no seu silêncio e na sua opressão camuflada, enquanto cruza a perna e se senta, voltada para o rio, a ler a Conspiração, a bíblia do sistema vigente, e a tomar um cimbalino. Sente-se iludida, ela!, com os fogos de artifício, os bodos, as batalhas de flores. 
Ah! Afinal, ali, não faltam alegrias!

No que toca a Fernando Pessoa... chapéu!
Contrariado no seu protagonismo, ele, que agora não passa de um mero fantasma, troca de lugar com um esboço de gente e parece não achar piada a toda uma diegese anacronicamente impossível. 
Afinal de contas, um pedaço de papel e uma mão cheia de delírios consegue ganhar forma e refletir-se no espelho, enquanto ele, Pessoa pessoa, deixa de existir?
Onde já se viu isto?!

Ele, que se quer mascarar de morte, e Reis, que seria o domador do seu próprio destino, um destino que lhe não pertence, trocam os seus papéis. De facto, é o criador que, no topo da cadeia alimentar, sem que nos apercebamos verdadeiramente, toma as rédeas da situação, com a sua presença vincada e constante, incómoda, até!, de quem passa por Reis e o pressiona e fica e insiste 
Estou a incomodar? 
e aproxima-se 
Voltei! 
mais um pouco 
Fica, a sério, segue a tua vida com a Lídia e com o garoto! 
e volta a meter o bedelho 
Cucu! 
e está permanentemente ali, como o estafermo da estátua do Adamastor, a lembrar que nos quer levar com ele; diz que não, que não quer, que vá com a outra, com ela, a tal da Lídia, dá-lhe pancadinhas nas costas, mas não desarreda o pé; fica; demora-se; até que Reis se canse e acabe por seguir jornada consigo, levando no braço The God of the Labyrinth, o bendito livro que o tramou bem tramado, desde que fincou pé na Ocidental praia lusitana.

Quanto ao desfecho, trocaram-me as voltas. 
Tinha a certezinha absoluta de que o título era só para enganar... 
Punha as mãos no fogo!
Mas não.
Enquanto Lídia opta pela vida, pelo caminho mais difícil e tortuoso, a nossa personagem modelada, agora com nuances emocionais advenientes do micro espaço da casa alugada no Alto de Santa Catarina - assim como a casa mobilada que cria raízes e reminiscências no conto “George” -, opta pelo universo literário. 

É tão fácil, Reis!
Tu!, que quase sentiste o dedo a tocar-te o coração, quando soubeste que ias ser pai!, e que choraste à vontade, na tua apoteose enquanto ser ficcional saramaguiano, na cama desfeita, aquando da revolução dos marinheiros! 
Tu!!
Só tu! nos deste ânimo para depois nos deixares!

E nós, leitores, claro!, sentimo-nos vazios e amargurados, pois torcíamos pela materialidade deste espectador que nunca se comprometeu com Lídia, quanto mais connosco!

As palavras de Saramago não nos deixam indiferentes, pela voz interventiva que revisita a História e nos transporta com ela, e pela escrita inusitada que, de alguma forma, nos impele a participar no enredo e a tomar partido. Ao assimilarmos a simbiose de falas e de discursos marcados por vírgulas, comprometemo-nos com a tarefa privilegiada de pontuar este texto.
Por isso, o meu muito obrigada.

Agora, em tom de confissão, aqui que ninguém nos ouve, seria caricato o filho de Ricardo Reis ainda andar por aí, ao Deus-dará, sem ninguém dar conta.
Ter os seus oitenta e quatro anos.
Mais coisa, menos coisa.
Viver em Lisboa.
Junto ao rio.
Provavelmente, teria filhos e netos e até bisnetos, quem sabe? 

E, surpreendentemente, alguém pegaria no estilhaçamento do espelho existencial de Pessoa e recriá-lo-ia, que já não seria a primeira vez que a literatura dava vida a alguém.

Podia até surgir o romance Os Reis, à semelhança de Os Maias e narrar a existência de uma geração de outros, com a letargia do nosso país como fio condutor, pois nada mudou, entretanto.

E se Pessoa, um dia, em Mensagem, se esqueceu de falar de Camões e da sua grandeza, vamos acreditar que não foi por inveja, mas sim por esquecimento. 

E ai dele, de Camões, que sorria na sua boca de bronze.
Ai dele!


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